E se Descartes tivesse Facebook?


Você vai ler a seguir a proposta de um ceticismo útil para o modo como a gente troca informação hoje em dia (2015). Não espere nada profundo, é apenas uma sugestão rasa como a tela de um tablet (mas que suporta imagem em 3D). Professores são aconselhados a não começar uma aula anunciando a lição de casa. Se o fizerem, dizem os manuais (que são os professores dos professores), os alunos ficarão pensando na lição e não prestarão atenção na aula. Vou começar pela lição, já que, nesse caso, o intuito é justamente que o leitor fique pensando nela.

Comece a contar quantas vezes você concorda com uma informação (notícia, postagem, propaganda, pesquisa e etc) logo após ter lido o título. Se eu tivesse que apostar, apostaria que isso acontece na maioria das vezes. Isso é um problema. É um sinal de que não estamos procurando informação, estamos procurando confirmação (e seus irmãos: o consolo, o apoio, um abraço e até um carinho). Vamos pensar na felicidade (eu já sabia!) do vegetariano quando lê um título do tipo: 'Bacon faz mal à pele'.  A inversão tende a ser simétrica. Pense em quantas vezes você já lê aquele texto contrário à sua posição política fazendo um comentário cético-irônico a cada sentença. Vamos admitir: nosso rigor, assim como nosso humor, é partidário. Um carnívoro, diante da mesma notícia, emenda: 'é claro que faz mal para a pele: a do porco.' Os dois processos, confirmação e negação cegas, funcionam para nos deixar feliz. Se seguirmos assim, nada abalará a visão de mundo que nos sustenta. Ainda assim, saindo da auto-ajuda, talvez esse não seja o melhor uso que se possa fazer do ceticismo.

Descartes ficou célebre por começar sua investigação pelo ceticismo. Não foi uma inovação dele, eram tempos tortuosos aqueles em que descobertas científicas (Copérnico, depois Galileu e a terra já não é o centro do universo!) abalavam os pilares do conhecimento. Não se assuste com as três referências em uma sentença, isso é tudo que eu sei sobre essas três celebridades e você não precisa de mais nada para entender o ponto. O ponto é que Descartes não aplicou o ceticismo aos seus rivais. Ele não foi rigoroso ou crítico com quem ele discordava. Muito pelo contrário, ele começou aplicando o ceticismo às suas próprias crenças. Hoje é fácil dizer que não deu muito certo, já que ele falou algumas coisas que hoje soam como bobagens (talvez seja porque ele não aplicou o ceticismo tão afundo como apregoava). Mas enfim, o que se extrai desse exemplo é que o ceticismo é uma arma que funciona melhor se utilizada contra nós mesmos. O movimento não é natural. Nada é mais artificial do que discordar de nós mesmos. A gente acha, acha não, a gente tem certeza de que sabe a verdade. E mais, quão estúpidos são aqueles que não percebem que nós estamos certos! Talvez essa certeza cega tenha uma explicação evolutiva. Quem não para para se questionar age mais e não hesita em ir até o fim. Em um contexto de luta pela sobrevivência isso pode ser vantajoso. Mas para buscar informações sobre o mundo é preciso abandonar essa natureza. Se você quer informação em vez de confirmação, comece duvidando de si. 

Isso dito, diante de uma notícia com a qual concordamos desde a leitura do título teremos duas opções razoáveis. a) Não ler, ou b) ler forjando um ceticismo. É claro que sempre se pode ler algo dauqele amigo, daquele comediante ou daquele jornalista com o qual sempre concordamos apenas para satisfazer aquela dose diária de confirmação das nossas certezas. Mas cuidado, é preciso fazer isso sabendo que é tão arriscado alimentar certezas quanto gremlins. Quem não gostou do título (ou quem gostou da sugestão) e está lendo esse texto em busca de problemas, com certeza já aventou para o problema que os não-céticos logo identificam no ceticismo: ele não pode ser aplicado a si mesmo. Pois se assim o fosse, o leitor deveria ser cético diante desse texto que aconselha a ser cético. A conclusão, nesse caso, seria que o cético, então, não deveria ser cético!?

Não necessariamente. Se o ceticismo é definido como uma arma a ser aplicada contra si mesmo, aqueles que discordam desse texto deviam questionar-se porque discordam. Apenas os céticos deveriam questionar seu não ceticismo diante desse texto, o que seria muito saudável. Desse ponto de vista, o ceticismo seria como o bumerangue que volta contra quem o lançou, mas, para quem sabe lançar, a volta é, na verdade, um benefício e não um problema. É possível ser cético (principalmente contra nossas certezas) sem ser nihilista. Como Descartes, vamos usar como um primeiro passo para continuar se informando. Uma vez ao dia, deixe de ler um artigo com o qual já concorda com o título e busque um da opinião contrária. Mas cuidado com essa busca. Não escolha a dedo o pior defensor da opinião contrária para justificar sua oposição. Procure bons oponentes, neles a gente pode encontrar amigos. Por exemplo, eu jamais irira concordar com as limitações da teoria evolutiva se fosse ler textos creacionistas.

O parágrafo final é hora colocar a sugestão no âmbito prático que é tema recorrente do blog. Diante de um projeto social a gente repete as mesmas tendências que diante de todas as outras informações. Se somos por uma causa, vamos concordar com ela, se somos contra, buscaremos suas falhas até além do bom senso. Educação é um tema de que (quase) todos concordam trazer benefícios sociais. Talvez não seja (ver tabela na pg.36). Mas se for, quem é pelo avanço tecnológico vai defender que o modo de resolver a situação é modernizar as escolas. Quem tem uma visão mais economicista vai defender aumentar os incentivos a professores e alunos. Quem foca nas relações humanas vai defender uma nova abordagem em sala de aula. Talvez seja bom que eles sejam tendenciosos a ponto de fazerem suas hipóteses virarem realidade. Só assim os céticos terão material menos especulativo para comparar resultados e apoiar o melhor programa. A sua vantagem é que a humildade epistemológica os permite abandonar as certezas iniciais. Alguém pensou em combater vermes para melhorar educação?


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