Sobre os sweatshops

A questão
O boicote aos sweatshops faz mais mal aos seus trabalhadores do que consumir seus produtos?

Definir o escopo
Para que o argumento se desenvolva de maneira mais bem estabelecida convém definir melhor o que se entenderá por sweatshop. Para ser considerado trabalho em sweatshop será necessário haver exploração desumana dos trabalhadores. Como numa relação de bonecas russas, agora é preciso definir exploração e desumana. É mais rápido tentar entender o que os dois juntos querem dizer. Casos menos consensuais considerados exploração por uns, mas não por outros, não se aplicam. Por exemplo, serviços árduos, menos remunerados do que se esperava, mas ainda sim regidos por direitos trabalhistas básicos não serão considerados. De modo que lixeiros, empregados domésticos, operários de mineração regularizados estão fora do escopo.

A exploração desumana nos sweatshops será definida como aquela que oferece remuneração muito baixa, cerceia a liberdade de ir e vir do trabalhador, o coloca em condições extremas que ameaçam sua saúde, não lhes garante direitos básicos como licenças médicas, intervalos para lanche ou usar o banheiro e impinge uma carga horária extenuante diária e de 6 a 7 dias por semana. Não se pretende uma definição definitiva. A perspectiva adotada será de que um certo número desses traços baste para caracterizar uma exploração desumana.

A comparação entre casos limítrofes entre exploração e exploração desumana talvez ilustrem a diferença. Compare as condições dos trabalhadores do almoxarifado da Amazon em países desenvolvidos (ou seja, com leis trabalhistas mais estabelecidas) e a produção de roupas em economias subdesenvolvidas como ficou exposta no caso do prédio desabado em Bangladesh. Ainda que os primeiros mereçam melhores condições de trabalho e reclamem do modo como são tratados, pintá-los como se estivessem na mesma situação dos últimos seria muito ruim para esses. Isso porque no segundo caso há violação clara de direitos humanos enquanto no primeiro não. Por outro lado, deve se deixar claro que esse exemplo não tem intuito de estabelecer uma separação simples segundo a qual todo trabalho em fábrica em economias subdesenvolvidas caracteriza exploração desumana.

O argumento do menos pior
Definido o escopo, é hora de apresentar o argumento de maneira caridosa. Entender um argumento com caridade, no jargão filosófico, equivale a interpretá-lo da melhor maneira possível antes de ver se ele procede. Em vista da exploração desumana que ocorre, é claro que ninguém, ou, pelo menos, ninguém que está pensando teoricamente no assunto, é a favor desse tipo de trabalho. O que se diz, é que acabar com sweatshops faria mais mal do que bem aos empregados. Portanto, o erro de quem boicota consiste na falha de não pensar como as coisas seriam se aquilo contra o que protestam acabasse. Por uma questão de facilidade, vamos chamar de argumento do 'menos pior' essa linha de defesa dos sweatshops.

Para o argumento do menos pior funcionar a narrativa do que aconteceria com o boicote aos sweatshops deve ser mais ou menos da seguinte maneira. As pessoas boicotam a marca X que, em algum momento da sua cadeia de produção, utiliza produtos produzidos por trabalhadores em condições desumanas. A empresa vai à falência. Seus empregados se transformam em desempregados e, ser desempregado, é pior do que trabalhar 16 horas por dia, 6-7 dias por semana, sem pausa, em um ambiente infernal, sem segurança, com chefes abusivos, em troca de um salário miserável.

Escolhas?
A opção pela descrição um tanto chocante foi proposital. O objetivo seria gerar uma primeira pergunta antes de entrar no argumento. Seria realmente preferível o sweatshop ao desemprego? Para os defensores do argumento do menos pior o comportamento dos trabalhadores que procuram esses empregos é tomado como um indicativo de que sim, é preferível. Pessoas chegam a emigrar de maneira ilegal em busca de empregos desse tipo. Aceito isso, a questão que se apresenta é se podemos aceitar a falta de opção como indicativo de preferência. Se eu vou a uma pizzaria que só serve um sabor de pizza por dia não pode se dizer que eu escolhi meu sabor preferido. Porém, tampouco pode se dizer que não houve escolha. Eu escolho se quero comer ou não. Mas podemos dizer que essa escolha atesta um nível mínimo de qualidade mínima da pizza? Para dizer que não é preciso uma evidência comportamental similar à oferecida acima. Nesse caso, é preciso que apareça uma opção um pouco menos ruim e que os clientes da pizzaria a preferissem.

Um caso prático que ilustra esse tipo de comportamento seria o das domésticas no Brasil (ainda que o serviço doméstico, como foi dito, não é um serviço com as condições tão ruins como as dos sweatshops). Com aumento da oportunidade no mercado de trabalho a porcentagem de mulheres que desempenham essa atividade historicamente mal remunerada vem caindo ano após ano. Diante desse tipo de exemplo parece seguro concluir que as pessoas preferem sweatshops a nada, mas que também prefeririam qualquer condição um pouco melhor em vez da que são coagidos a aceitarem. A situação então é que sweatshops são melhores que nada, mas qualquer outra opção um pouquinho melhor é preferível.

Se voltarmos ao argumento veremos que essa preferência não o desvalida. Isso porque segundo a sua narrativa estaríamos em um dilema binário para escolher entre sweatshops ou desemprego (ou, no máximo, entre sweatshop ou empregos ainda piores). Também existem exemplos para ilustrar essa situação. Um caso citado é o de um senador do estado americano de Iowa que tentou passar uma lei para impedir a importação de produtos vindo de fábricas que utilizavam mão de obra infantil. Em vista disso as empresas teriam demitido as crianças que, segundo um relatório das nações unidas, parecem ('are thought to') ter migrado para empregos ainda piores. A linguagem do relatório é muito pouco objetiva para que o caso seja tomado como evidência, mas pode ser um indicativo. Talvez seja sim o caso de que um emprego no sweatshop seja uma maneira de ajudar quem não tem outra opção.

A maré
Seguindo essa linha do argumento do menos pior alguns economistas conservadores e outros mais à esquerda defendem a necessidade dos sweatshops. O argumento deles vai além do nível individual e apresenta uma regurgitação do notório argumento da maré. Segundo o argumento da maré o desenvolvimento econômico provocado pelos trabalhos criados pelos sweatshops vai incrementar a economia da região e dar empregos aos desempregados. Além disso, eventualmente, a maré vai levantar também a qualidade de vida desses que compõem o estrato mais baixo dentre os que participam dessa economia.

O exemplo aqui seria o dos tigres asiáticos cuja economia desenvolvida de agora tem origem em um impulsionamento da economia proporcionado por produção de bens baratos em sweatshops. A partir da renda advinda desse mercado, seus governos investiram com sagacidade em infraestrutura e educação. Assim eles passaram de uma região produtora de bens baratos para produtores de tecnologia de ponta. Agora, em vez de produzirem bens baratos eles compram esses produtos de sweatshops em outros países. Esses países, com o tempo e os investimentos necessários, seguirão o mesmo caminho.

Porém, há um problema nesse modelo. Basta adotar uma perspectiva global para notar que houve apenas um deslocamento da violação aos direitos humanos dos sweatshops que passou de dentro das fronteiras de uns países para regiões estrangeiras. Portanto, não faz sentido dizer que eles ultrapassaram a fase de sweatshops. Não, eles apenas os externalizaram. Os que sofriam em seu país foram substituídos por outros que agora sofrem em outro lugar, e, se esses se desenvolverem, farão o mesmo. Nessa dinâmica, se a prática dos sweatshops continuar sendo aceita, haverá sempre apenas uma transferência do sofrimento. O que torna esse um argumento ético (e provavelmente econômico do ponto de vista global) muito ruim.

Uma analogia histórica pode ajudar a colocar em perspectiva. Era justo para EUA, Europa, Brasil e etc usarem escravos vindos de outros continentes? E, depois da proibição na Europa ou no norte dos EUA, era justo, consumir bens produzidos por escravos em outras regiões? Por um tempo foi, mas não queremos repetir esse erro. Talvez seja utópico demais pedir que todos trabalhadores tenham condições de trabalho equiparáveis. Na verdade, em vista do mercado globalizado atual, esse tipo de igualdade, ainda que desejável, retiraria o incentivo das empresas usarem mão de obra de regiões menos desenvolvidas e, como vimos, o nada parece ser pior do que os sweatshops. Porém, o que se pede são apenas condições mais humanas e salários mais condizentes. Em vista dos preços dos produtos quando chegam nas mãos do consumidor isso parece bem factível sem nenhuma grande alteração em como o mercado funciona (ainda que uma alteração seja desejável, mas como é muito mais difícil e incerta de se conseguir ficará para outra discussão).

Múltiplos outros jeitos possíveis
Argumentos do tipo do menos pior também podem ser criticados dentro da falha que eles viram no boicote aos sweatshops. Assim como é uma falha deixar de pensar o que aconteceria se as coisas fossem de 'outro jeito', também seria uma falha pensar que há apenas um 'outro jeito' possível. Não é assim, em sistemas complexos como as sociedades humanas existe uma pluralidade de possibilidades. Para manter o diálogo com o argumento do menos pior convém se ater a situações que já aconteceram para vislumbras essas possibilidades.
Um exemplo fatual de outras consequências possíveis acontece na pressão pública feita às grandes marcas para que mudem seu comportamento. Um desses casos envolveu a uma campanha pública (incluindo boicote) contra a Apple porque seus aparelhos, muito caros, eram montados em sweatshops da Foxconn. Como consequência, é claro que a empresa mais valiosa do mundo não faliu, sequer a terceirizada mais criticada, a Foxconn, fechou. O que se seguiu foi um comprometimento da Apple de vigiar mais de perto as condições de trabalho em seus fornecedores. Empresas de chocolate, seguindo pressão da Oxfam, fizeram algo parecido e até o comprometimento do McDonalds de não usar ovos de galinhas criadas em gaiolas se encaixa, de maneira ampla, nessa discussão. Em suma, não é preciso querer fechar as empresas, o que é necessário é apenas reforçar a opinião comum de intolerância a este conceito de sweatshops.

E, como quem argumenta a favor dos sweatshops em vez de nada, concorda que as condições desses trabalhadores são horríveis, é de se esperar que eles concordem com um melhoramento dessas condições. Além disso, acho que é saudável manter um certo nível de ingenuidade que permita pensar em 'mundos possíveis' melhores além de intervenções cujas consequências podem ser mensuradas. Afinal de contas, as melhores possibilidades provavelmente vão aparecer no meio de muitas tentativas de outros jeitos que fracassam. Em casos complexos como esse seria preciso uma grande quantidade de tentativas para se selecionar com qualidade.

Consumo ético
O segundo alvo da crítica aos que defendem o boicote aos sweatshops é uma das soluções que vem abocanhando uma parte cada vez maior do mercado. Chama-se consumo ético a busca por parte do consumidor de ter uma garantia de que a produção dos bens adquiridos respeite os direitos humanos dos trabalhadores e o meio ambiente. O termo é geral e abarca as mais variadas ações, nem todas com o mesmo nível de coerência e eficácia. Pode ser um selo de garantia de produção orgânica ou um selo de fair trade que garante bom tratamento dos empregados.

Os críticos apontam que existem vários problemas com a maioria dessas iniciativas. O mais evidente é que, como é caro obter esses selos, eles acabam privilegiando negócios de médio e grande porte. Isso deixa os pequenos produtores, os mais necessitados, fora do jogo. Outro efeito colateral é que, devido a esse diferencial, a tendência é que esses produtos do consumo ético chegam ao consumidor por um preço mais alto. O problema disso é que uma renda que poderia ser gasta ajudando soluções eficazes para melhorar as condições de vida de quem precisa acaba indo para esses bens.

O primeiro ponto aqui é reconhecer o que há de positivo nesse movimento de consumo. Fica claro uma vontade dos consumidores de bens dos países desenvolvidos de assegurar uma cadeia de produção justa por trás dos bens que eles compram. As pessoas estão dispostas a pagar mais para participar de um mercado mais bem distribuído. Isso deve ser elogiado e aproveitado. Por outro lado, se a crítica mostra que essa vontade não tem gerado os melhores resultados, é preciso reavaliar a solução. Digo reavaliar, e não abandonar porque o fato de que o modelo atual não funciona, não implica que é melhor deixar como está. Se o estado atual é ruim e a solução não funcionou é hora de procurar outra solução (ou outra maneira de aplicar a solução proposta). A questão, mais uma vez, é não assumir que o que acontece agora em um caso particular obriga que sempre acontecerá assim. Existem várias outras possibilidades possíveis.

Uma possibilidade no caso dos orgânicos adotada pelo governo do Brasil pode apontar uma solução. Aqui, produtores da agricultura familiar, principalmente os assentados em terras de reforma agrária, podem vender seus produtos como orgânicos sem custo adicional de requirir um selo. Basta se declararem produtores orgânicos. O governo ainda se dispõe a comprar sua produção se eles se unirem em um grupo e fornecerem quantia suficiente para a alimentação oferecida em escolas públicas e outros projetos.

Uma analogia
Agora vou dar meta-passo e tentar identificar o que haveria por trás dessas posturas no campo da meta-ética. Eu suponho que a universalidade opere na diferença de perspectiva vista acima. Quem não aceita o 'menos ruim' universaliza. Para esses comprar de um sweatshop não é apenas incentivar essa empresa particular que vai ajudar esse trabalhador que precisa, mas é também legitimar esse modelo de mercado que se embasa na exploração desumana de trabalhadores. Já quem defende o 'menos ruim' enfatiza que a consequência de comprar em sweatshop para os trabalhadores da empresa é melhor do que o boicote.
É hora de outra analogia para pensar o dilema. Suponha que você veja um animal silvestre sendo vendido em um mercado sem as menores condições higiênicas e de conforto. Pode se ter vontade de comprar o animal para salvar esse indivíduo em particular. Por outro lado, pode se pensar que ao comprá-lo, se incentivará o mercador a capturar um outro animal, e até outras pessoas a se tornarem mercadoras de animais silvestres. Desse ponto de vista, o ato feito para ajudar um indivíduo acaba condenando vários outros.
Primeiro, há de se responder o cético a mudanças comportamentais por atitudes isoladas. Ele dirá que, se você não comprar, outro comprará e tudo vai ficar na mesma. Esse, no entanto, não parece ser um bom contra-argumento para o boicote por alguns motivos. Primeiro, não comprar teria sido ruim na medida que você não ajudou o animal particular em questão. Ora, se outro o comprar, o indivíduo será ajudado de qualquer maneira, de modo que o bem será o mesmo. O caso dos sweatshops ainda tem o agravante de que o benefício não vai assim direto a quem você quer ajudar, mas a maior parte fica com o dono das empresas em que eles trabalham.
Segundo, é claro que ninguém é tão ingênuo a ponto de pensar que a sua abstinência solitária da compra vai acabar com o comércio. Mas, por outro lado, há de se concordar que é a soma de abstinências de compra que vai enfraquecer o comércio, e, quem sabe, acabar com ele. Portanto, cada um tem sua pequena parte insuficiente mas necessária para mudar as coisas. Além disso, se o argumento do um só não faz diferença funciona para criticar quem quer boicotar, ele deveria funcionar também contra quem acha que boicotar gera é mais mal do que bem. Isso porque se o boicote do indivíduo não faz diferença positiva, também não fará negativa. De qualquer forma fica claro que aceita a universalização, não se trata de lutar para que hajam alternativas éticas para que os consumidores possam escolher, mas antes que seja obrigação de todo e qualquer negócio oferecer condições humanas de trabalho aos seus empregados.

Confronto
Até aqui, temos que os defensores do argumento do menos pior acham que a alternativa ao sweatshop é a sua ausência e que isso gera mais mal do que bem. Já os defensores do argumento do boicote e do consumo ético, acham que parar de comprar produtos de sweatshops e comprar produtos com selos de comércio justo é a melhor saída. Seus opositores, no entanto, apontam que o comércio ético corrobora seu ponto de que a alternativa aos sweatshops é pior que sua permanência, pois privilegia quem não está no fundo da cadeia de produção.
Se confrontarmos essas posições aceitando o que há de plausível e o que não funciona em cada uma teríamos que não é aceitável que hoje em dia se coloque trabalhadores nas condições impostas pelos sweatshops. Isso deve acabar e é perfeitamente factível que aconteça. O boicote pode ser um passo para se pedir o fim dos sweatshops, no entanto, ele não pode ser pelo fim da fábrica nos países em desenvolvimento, mas antes pela regulamentação de condições necessárias para a sua permanência. Além disso, a alternativa aos produtos boicotados não pode ser a dos selos de consumo ético. Esses fazem mais mal aos produtores em pior situação no mercado global. Se for assim, se segue que é preciso também boicotar os produtos sobre taxados do consumo ético.

Colocar em prática

Desse caminho eu moldei qual será minha atitude diante da questão da seguinte maneira. A solução, de fato, não é conclusiva, mas me parece suficiente para evitar, primeiro, produtos de selos de consumo ético e, segundo, produtos de sweatshops. No fim das contas, o que se deve procurar são produtos não sobretaxados com a desculpa de assegurarem bom tratamento aos trabalhadores e também que não venham de sweatshops. Porém, se tiver que escolher entre um ou outro, é melhor escolher aquele procedente de um sweatshop e gastar o dinheiro que você economizou para algum tipo de ajuda humanitária que lhe apeteça. Porém, não é o caso que sempre você tem apenas essas duas opções. Pensando em leguminosas, por exemplo, você não precisa comprar ou de um produzido com trabalho escravo ou a loja de orgânicos em que os preços são absurdos. Existem várias opções entre esses extremos. O mesmo acontece com roupas, que não variam apenas entre produzidas em sweatshops ou atestadas com selo de qualidade.  

Alguns caminhos para um mundo menos ruim

O problema
Um problema que um cidadão de classe média (que na verdade é afortunado) de um mundo globalizado enfrenta é o da procedência dos bens que consome. Sabemos quão grandes são as chances de que, em algum momento na cadeia de produção dos vários bens que compramos, haja exploração desumana de um trabalhador.

Alguns exemplos mais comuns de casos de exploração desumana:
A indústria da moda tem várias ocorrências de exploração de trabalho ilegal e infantil;
Muitos dos alimentos pelos quais pagamos caro vêm de agricultores em situação de semiescravidão;
A extração de minerais permanece retirando vários anos de vida saudável de seus trabalhadores;
A montagem de eletrônicos também impõe cargas horárias sobre-humanas aos trabalhadores.

Em busca das raízes
1. Um socialista (usando o termo de maneira bem ampla) diria que a exploração é uma condição inerente ao sistema capitalista e a solução depende de mudar este sistema e a estrutura da sociedade. É preciso acabar com o mercado liberal.

2. Um liberal iria no sentido oposto. Para ele o capitalismo opera num sistema gradual de inclusão que pode até começar provocando exploração excessiva dos trabalhadores dos países periféricos, mas, com o tempo, a medida que esses países entram mais no sistema, os direitos e ganhos dos seus trabalhadores acabam aumentando. Para ele, interferir no sistema só vai tirar a possibilidade da economia do país e de seus trabalhadores crescerem.

Primeiro, é preciso verificar o desacordo em busca de alguns fatos
Dá pra chamar de fato histórico que o capitalismo, pelo menos até hoje, depende da exploração de trabalhadores. Havia a escravidão, que foi banida na Europa, mas continuou na África e nas Américas. Depois, ela também foi proibida ali, mas os mercados europeus continuaram usando a África e Américas central e do sul como uma fonte de produtos agrícolas que usa empregados em condições miseráveis. Além disso, há o movimento de transferir fábricas com produção por trabalho não qualificado para a ásia e países capitalistas periféricos que não tiveram movimento sindical e aceitam que seus trabalhadores passem por condições deploráveis. E mais, como os direitos aos trabalhadores aconteceram no ocidente de maneira ligada à crítica da esquerda, o socialista parece ter um ponto concreto ao dizer que mudanças estruturais devem ser vislumbradas.

Por outro lado, a própria organização dos fatos acima alude ao sistema de ondas que sai do centro e vai, lentamente, agindo na periferia, reverberando melhorias (ainda que mais lentamente que gostaríamos). Assim, por exemplo, teria sido com os tigres asiáticos, que antes eram lugares de produção de bens baratos, cuja venda massiva lhes fortaleceu a economia, permitindo que eles investissem em estrutura e educação, chegando ao nível de hoje, em que produzem tecnologia de ponta e seus trabalhadores são bem pagos. O exemplo mais recente de alguém que começou a fazer esse percurso seria o Vietnã. O liberal, portanto, também tem aonde assentar o seu ponto.

Há um vitorioso no confronto?
Se confrontarmos as posições, chegamos a um impasse que parece favorecer o ponto do socialista. Mesmo se aceitarmos a justificativa do melhoramento gradual, o fato é que a expansão das melhorias sempre dependeu de, em algum lugar da cadeia, haver mão de obra a ser explorada. A resposta mais comum e convincente do liberal seria que isso não quer dizer que sempre haverá essa exploração. Em pouco tempo haverá a revolução tecnológica na qual robôs substituirão esta mão de obra explorada. O debate segue e o socialista logo encontra uma contra-crítica. Se a utopia capitalista acontecer, vai gerar é uma distopia, pois, daí, surgirá uma massa de trabalhadores sem emprego.

O socialista também parece vencer com este último ponto, mas o problema é que um exame mais atento mostra que ele vai contra a sua postura original. Esta contra-crítica implica, mesmo sem admitir, que, antes da revolução tecnológica, ou seja, agora, também seria verdade que os trabalhadores estão menos mal de vida sendo explorados do que desempregados. Ora, este é exatamente o ponto de muitos liberais que declaram ter uma posição realista em relação ao mercado globalizado. É melhor comprar os produtos produzidos em condições não ideias do que boicotá-los e tirar emprego dos trabalhadores colocando-os em uma condição ainda pior.

Sem uma resposta, mas prontos para buscar soluções
Uma postura interessante para vislumbrar soluções realistas seria tentar extrair soluções a partir do comportamento dos trabalhadores em busca de sobrevivência.

1. Não é preciso pensar em um futuro distópico para encontrar essas situações. No Brasil, por exemplo, os ônibus têm catraca eletrônica e cobrador. A redundância é regulada pelo governo que proíbe a substituição dos trabalhadores por máquinas. Os trabalhadores estão de acordo com isso pois chegaram a fazer greve para impedir sua demissão. Seu trabalho é mal remunerado, sem condições ideais de saúde e bem arriscado, mas, ainda assim, eles o preferem ao desemprego. Deste modo eles concordam, através de ações, que é melhor um emprego medíocre ao desemprego.

A solução do governo de impedir a demissão por lei aponta, portanto, para um tipo possível de intervenção: Fazer campanha para que os governos criem leis que protejam os trabalhadores e as façam cumprir. Esse tipo de solução engloba ambas as posições acima. Se trataria de uma expansão gradual do mercado que deveria ir acompanhada por lei (e não seguida de longe) dos direitos sociais reconhecidos no mundo economicamente desenvolvido. [Há de se considerar que se for assim, as empresas perderiam o incentivo de sair dos centros de mercado. Mas esse não parece ser o caso já que mesmo com melhores condições a quantidade de mão de obra disponível ainda reduziria o custo.] Essa necessidade de regulação externa responde às evidências de que o mercado por si só é incapaz de se regular em pontos cruciais que seriam de interesse da maioria, como nos direitos dos empregados, uso responsável do meio ambiente e até mesmo na definição do que é 'livre' comércio.

2. Os protestos de junho de 2013 no Brasil começaram por causa do aumento de passagem no transporte coletivo. O problema segundo os descontentes era que as empresas já ganhariam muito, mas, mesmo assim, aumentavam as passagens anualmente. Isso prejudicaria muito os usuários. Quase não se falou sobre a questão dos cobradores e motoristas. Seria válido perguntar qual seria a reação se o aumento da passagem fosse feito para ser repassado na íntegra aos empregados. Será que isso seria aceito de bom grado pela população? De maneira análoga, será que o consumidor aceitaria pagar mais caro pelos produtos que compra para assegurar um salário digno e boas condições aos trabalhadores de toda cadeia de produção dos bens consumidos? Para uma parcela dos consumidores que podem se dar a esse luxo, parece que sim. Podemos ver isso no crescimento da preocupação das empresas em anunciar sua responsabilidade social e também nos selos de fair trade.

Estes programas, em geral, ainda parecem ser mais maquiagem do que eficazes, mas como o que está sob análise é o comportamento dos consumidores, não faz diferença. Daí surge uma outra opção de intervenção, criar uma necessidade mercadológica de consideração do direito dos trabalhadores que vai além do preço final e considera também a responsabilidade social da empresa diante dos seus trabalhadores.

3. Outro tipo de atitude que confirma a preferência por um emprego medíocre ao desemprego é a imigração ilegal. Em vez de esperar que a marola do capitalismo chegue ao lugar em que vivem, vários trabalhadores migram de lugares onde não têm trabalho nem direitos para lugares onde os trabalhadores têm emprego e direitos. Um exemplo recente é o dos haitianos que vêm ao Brasil através da amazônia em busca de sobrevivência. O problema é que, ao chegarem em situação ilegal, eles até encontram emprego, mas não encontram os direitos que os trabalhadores legais têm garantidos.

Esse caso permite vislumbrar uma outra solução possível, a abertura das fronteiras. Assim, os trabalhadores poderiam migrar para onde seu trabalho fosse mais necessário e com as melhores condições e ter os direitos legais dos trabalhadores daquela região.

4. Existe ainda um exemplo mais desesperado de busca por emprego medíocre: o da indústria do sexo. A postura de uma mulher que não quer se prostituir, mas, ainda assim, o faz para sobreviver, só faz sentido se sem essa fonte de renda ela não pudesse sobreviver. [O caso da que escolhem esse tipo de profissão, que também é legítimo, descaracteriza a exploração e não faz parte do assunto em questão.]

A solução que surge desse tipo de situação é a formação de uma aliança mundial para garantir uma renda básica para qualquer um sobreviver, independente das condições externas em que cada um se encontrar. Assim ninguém colocaria em risco a sua sobrevivência por uma questão de sobrevivência.

Em suma:
Estes quatro paradigmas reais nos orientam na busca do que seria desejável para lutar por:

1. Um órgão externo mundial regulador do trabalho seria um bom começo. Assim, toda empresa, em qualquer lugar, seria obrigada a garantir direitos básicos aos seus trabalhadores.

2. A transparência acerca da procedência e a prestação de conta por parte das empresas, dos terceirizados e dos governos que vendem matéria-prima, produtos agrícolas e manufaturados.

3. Liberar a migração de trabalhadores. Assim, quem quisesse poderia ir para onde sua mão de obra é necessária e paga com melhores salários e melhores condições.

4. Um salário-mínimo mundial que garantiria a todo ser humano um ganho básico para sua sobrevivência. Uma vez que ninguém precisaria trabalhar para sobreviver os empregadores teriam que oferecer algo melhor para conseguir mão de obra.

Como conseguir isso?
É claro que é preciso aprofundar, e também aplicar em algum nível, essas propostas para se aumentar a evidência de sua eficácia. Como não há nada de muito inovador nelas, já existe algum movimento em todos esses sentidos. Think tanks como a NEF tentam propor maneiras de regular mercados com base no bem-estar das pessoas. Ongs como a Oxfam advogam pela transparência em transações entre países, bem como selos de Fair Trade (ainda que não pareçam ser eficazes) apontam para uma tentativa de transparência no nível individual. Centros de pesquisa como o CGD mostram estudos que provariam o impacto positivo de uma abertura de fronteiras ao passo que departamentos acadêmicos fazem o mesmo em relação a um salário-mínimo universal. Programas de transferência de renda como a GiveDirectly também atuam de maneira próxima a essa causa corroborando seu potencial de impacto positivo.


Também não é surpresa que o confronto dos modos de pensar tratados tenha gerado propostas que ou pendem para uma agenda liberal (3 e 4) ou para uma social (1 e 2). A meta-conclusão que se retira desse breve passeio é a necessidade de múltiplos pontos de vista e de ambos estarem abertos para discussões em vista de um resultado mais robusto.