Alguns caminhos para um mundo menos ruim

O problema
Um problema que um cidadão de classe média (que na verdade é afortunado) de um mundo globalizado enfrenta é o da procedência dos bens que consome. Sabemos quão grandes são as chances de que, em algum momento na cadeia de produção dos vários bens que compramos, haja exploração desumana de um trabalhador.

Alguns exemplos mais comuns de casos de exploração desumana:
A indústria da moda tem várias ocorrências de exploração de trabalho ilegal e infantil;
Muitos dos alimentos pelos quais pagamos caro vêm de agricultores em situação de semiescravidão;
A extração de minerais permanece retirando vários anos de vida saudável de seus trabalhadores;
A montagem de eletrônicos também impõe cargas horárias sobre-humanas aos trabalhadores.

Em busca das raízes
1. Um socialista (usando o termo de maneira bem ampla) diria que a exploração é uma condição inerente ao sistema capitalista e a solução depende de mudar este sistema e a estrutura da sociedade. É preciso acabar com o mercado liberal.

2. Um liberal iria no sentido oposto. Para ele o capitalismo opera num sistema gradual de inclusão que pode até começar provocando exploração excessiva dos trabalhadores dos países periféricos, mas, com o tempo, a medida que esses países entram mais no sistema, os direitos e ganhos dos seus trabalhadores acabam aumentando. Para ele, interferir no sistema só vai tirar a possibilidade da economia do país e de seus trabalhadores crescerem.

Primeiro, é preciso verificar o desacordo em busca de alguns fatos
Dá pra chamar de fato histórico que o capitalismo, pelo menos até hoje, depende da exploração de trabalhadores. Havia a escravidão, que foi banida na Europa, mas continuou na África e nas Américas. Depois, ela também foi proibida ali, mas os mercados europeus continuaram usando a África e Américas central e do sul como uma fonte de produtos agrícolas que usa empregados em condições miseráveis. Além disso, há o movimento de transferir fábricas com produção por trabalho não qualificado para a ásia e países capitalistas periféricos que não tiveram movimento sindical e aceitam que seus trabalhadores passem por condições deploráveis. E mais, como os direitos aos trabalhadores aconteceram no ocidente de maneira ligada à crítica da esquerda, o socialista parece ter um ponto concreto ao dizer que mudanças estruturais devem ser vislumbradas.

Por outro lado, a própria organização dos fatos acima alude ao sistema de ondas que sai do centro e vai, lentamente, agindo na periferia, reverberando melhorias (ainda que mais lentamente que gostaríamos). Assim, por exemplo, teria sido com os tigres asiáticos, que antes eram lugares de produção de bens baratos, cuja venda massiva lhes fortaleceu a economia, permitindo que eles investissem em estrutura e educação, chegando ao nível de hoje, em que produzem tecnologia de ponta e seus trabalhadores são bem pagos. O exemplo mais recente de alguém que começou a fazer esse percurso seria o Vietnã. O liberal, portanto, também tem aonde assentar o seu ponto.

Há um vitorioso no confronto?
Se confrontarmos as posições, chegamos a um impasse que parece favorecer o ponto do socialista. Mesmo se aceitarmos a justificativa do melhoramento gradual, o fato é que a expansão das melhorias sempre dependeu de, em algum lugar da cadeia, haver mão de obra a ser explorada. A resposta mais comum e convincente do liberal seria que isso não quer dizer que sempre haverá essa exploração. Em pouco tempo haverá a revolução tecnológica na qual robôs substituirão esta mão de obra explorada. O debate segue e o socialista logo encontra uma contra-crítica. Se a utopia capitalista acontecer, vai gerar é uma distopia, pois, daí, surgirá uma massa de trabalhadores sem emprego.

O socialista também parece vencer com este último ponto, mas o problema é que um exame mais atento mostra que ele vai contra a sua postura original. Esta contra-crítica implica, mesmo sem admitir, que, antes da revolução tecnológica, ou seja, agora, também seria verdade que os trabalhadores estão menos mal de vida sendo explorados do que desempregados. Ora, este é exatamente o ponto de muitos liberais que declaram ter uma posição realista em relação ao mercado globalizado. É melhor comprar os produtos produzidos em condições não ideias do que boicotá-los e tirar emprego dos trabalhadores colocando-os em uma condição ainda pior.

Sem uma resposta, mas prontos para buscar soluções
Uma postura interessante para vislumbrar soluções realistas seria tentar extrair soluções a partir do comportamento dos trabalhadores em busca de sobrevivência.

1. Não é preciso pensar em um futuro distópico para encontrar essas situações. No Brasil, por exemplo, os ônibus têm catraca eletrônica e cobrador. A redundância é regulada pelo governo que proíbe a substituição dos trabalhadores por máquinas. Os trabalhadores estão de acordo com isso pois chegaram a fazer greve para impedir sua demissão. Seu trabalho é mal remunerado, sem condições ideais de saúde e bem arriscado, mas, ainda assim, eles o preferem ao desemprego. Deste modo eles concordam, através de ações, que é melhor um emprego medíocre ao desemprego.

A solução do governo de impedir a demissão por lei aponta, portanto, para um tipo possível de intervenção: Fazer campanha para que os governos criem leis que protejam os trabalhadores e as façam cumprir. Esse tipo de solução engloba ambas as posições acima. Se trataria de uma expansão gradual do mercado que deveria ir acompanhada por lei (e não seguida de longe) dos direitos sociais reconhecidos no mundo economicamente desenvolvido. [Há de se considerar que se for assim, as empresas perderiam o incentivo de sair dos centros de mercado. Mas esse não parece ser o caso já que mesmo com melhores condições a quantidade de mão de obra disponível ainda reduziria o custo.] Essa necessidade de regulação externa responde às evidências de que o mercado por si só é incapaz de se regular em pontos cruciais que seriam de interesse da maioria, como nos direitos dos empregados, uso responsável do meio ambiente e até mesmo na definição do que é 'livre' comércio.

2. Os protestos de junho de 2013 no Brasil começaram por causa do aumento de passagem no transporte coletivo. O problema segundo os descontentes era que as empresas já ganhariam muito, mas, mesmo assim, aumentavam as passagens anualmente. Isso prejudicaria muito os usuários. Quase não se falou sobre a questão dos cobradores e motoristas. Seria válido perguntar qual seria a reação se o aumento da passagem fosse feito para ser repassado na íntegra aos empregados. Será que isso seria aceito de bom grado pela população? De maneira análoga, será que o consumidor aceitaria pagar mais caro pelos produtos que compra para assegurar um salário digno e boas condições aos trabalhadores de toda cadeia de produção dos bens consumidos? Para uma parcela dos consumidores que podem se dar a esse luxo, parece que sim. Podemos ver isso no crescimento da preocupação das empresas em anunciar sua responsabilidade social e também nos selos de fair trade.

Estes programas, em geral, ainda parecem ser mais maquiagem do que eficazes, mas como o que está sob análise é o comportamento dos consumidores, não faz diferença. Daí surge uma outra opção de intervenção, criar uma necessidade mercadológica de consideração do direito dos trabalhadores que vai além do preço final e considera também a responsabilidade social da empresa diante dos seus trabalhadores.

3. Outro tipo de atitude que confirma a preferência por um emprego medíocre ao desemprego é a imigração ilegal. Em vez de esperar que a marola do capitalismo chegue ao lugar em que vivem, vários trabalhadores migram de lugares onde não têm trabalho nem direitos para lugares onde os trabalhadores têm emprego e direitos. Um exemplo recente é o dos haitianos que vêm ao Brasil através da amazônia em busca de sobrevivência. O problema é que, ao chegarem em situação ilegal, eles até encontram emprego, mas não encontram os direitos que os trabalhadores legais têm garantidos.

Esse caso permite vislumbrar uma outra solução possível, a abertura das fronteiras. Assim, os trabalhadores poderiam migrar para onde seu trabalho fosse mais necessário e com as melhores condições e ter os direitos legais dos trabalhadores daquela região.

4. Existe ainda um exemplo mais desesperado de busca por emprego medíocre: o da indústria do sexo. A postura de uma mulher que não quer se prostituir, mas, ainda assim, o faz para sobreviver, só faz sentido se sem essa fonte de renda ela não pudesse sobreviver. [O caso da que escolhem esse tipo de profissão, que também é legítimo, descaracteriza a exploração e não faz parte do assunto em questão.]

A solução que surge desse tipo de situação é a formação de uma aliança mundial para garantir uma renda básica para qualquer um sobreviver, independente das condições externas em que cada um se encontrar. Assim ninguém colocaria em risco a sua sobrevivência por uma questão de sobrevivência.

Em suma:
Estes quatro paradigmas reais nos orientam na busca do que seria desejável para lutar por:

1. Um órgão externo mundial regulador do trabalho seria um bom começo. Assim, toda empresa, em qualquer lugar, seria obrigada a garantir direitos básicos aos seus trabalhadores.

2. A transparência acerca da procedência e a prestação de conta por parte das empresas, dos terceirizados e dos governos que vendem matéria-prima, produtos agrícolas e manufaturados.

3. Liberar a migração de trabalhadores. Assim, quem quisesse poderia ir para onde sua mão de obra é necessária e paga com melhores salários e melhores condições.

4. Um salário-mínimo mundial que garantiria a todo ser humano um ganho básico para sua sobrevivência. Uma vez que ninguém precisaria trabalhar para sobreviver os empregadores teriam que oferecer algo melhor para conseguir mão de obra.

Como conseguir isso?
É claro que é preciso aprofundar, e também aplicar em algum nível, essas propostas para se aumentar a evidência de sua eficácia. Como não há nada de muito inovador nelas, já existe algum movimento em todos esses sentidos. Think tanks como a NEF tentam propor maneiras de regular mercados com base no bem-estar das pessoas. Ongs como a Oxfam advogam pela transparência em transações entre países, bem como selos de Fair Trade (ainda que não pareçam ser eficazes) apontam para uma tentativa de transparência no nível individual. Centros de pesquisa como o CGD mostram estudos que provariam o impacto positivo de uma abertura de fronteiras ao passo que departamentos acadêmicos fazem o mesmo em relação a um salário-mínimo universal. Programas de transferência de renda como a GiveDirectly também atuam de maneira próxima a essa causa corroborando seu potencial de impacto positivo.


Também não é surpresa que o confronto dos modos de pensar tratados tenha gerado propostas que ou pendem para uma agenda liberal (3 e 4) ou para uma social (1 e 2). A meta-conclusão que se retira desse breve passeio é a necessidade de múltiplos pontos de vista e de ambos estarem abertos para discussões em vista de um resultado mais robusto.