Sobre solucionar problemas causados por nós mesmos



As nossas maneiras mais comuns de solucionar problemas, principalmente os causados por nós mesmos, podem ser colocadas em um espectro que varia entre dois opostos. Em um lado, temos a solução por abstinência, de outro, a solução por imersão. O que a nomenclatura escolhida tenta deixar evidente é que, ou bem solucionamos um problema deixando de fazer o que o causa, ou bem entramos a fundo na sua causa a fim de encontrar uma solução ali de dentro. Na maioria das vezes, lidamos com os problemas em posições intermediárias do espectro, mas sempre, conscientemente, tendendo para um ou para outro lado.

Um exemplo corriqueiro pode ser pensado a partir dos relacionamentos humanos. Às vezes, diante de um relacionamento que deixou de funcionar, o abandonamos, outras vezes, tentamos torná-lo mais sério. De um lado, dois namorados entediados podem se separar e um cônjuge de um casamento naufragado, após o divórcio, pode decidir morar em uma cidade diferente. Do outro lado, dois namorados entediados podem decidir se casar tanto quanto um casamento que afunda pode tentar ser resgatado pela opção de ter filhos.

Não há uma resposta única para o modo de agir preferível. É fácil pensar em exemplos de relacionamentos resgatados por um compromisso mais sério ou por crianças, bem como em vidas que prosperaram após o abandono de parceiros. Esse parece ser mais um caso de 'cada caso é um caso'. Mais interessante ainda é pensar que não só cada caso é um caso, mas cada um é de um jeito. Nessa concepção, um certo tipo de personalidade tenderia a solucionar as coisas por abstinência enquanto outros prefeririam optar pela imersão. Se for assim, identificar uma tendência em si pode ser uma estratégia importante, não só para aproveitar suas forças, mas também para evitar ser feito refém delas.

Uma pessoa que sempre abandona um relacionamento pode vir a perceber que, dependendo do caso, convém tentar fazer uma força para dar certo. Ao passo que aqueles que tentam insistir sempre devem aprender a reconhecer quando abandonar o barco. Bom, acho que é hora de abandonar o exemplo comezinho do relacionamento. Mais importante para a ética é pensar em casos que envolvem uma comunidade mais numerosa de pessoas. O que vem em mente, nestes tempos, é o aquecimento global. E, nesse âmbito, o exemplo primeiro é sempre dos veículos que usam energia gerada por combustíveis fósseis.

Diante de um problema identificado temos, então, a opção de agir em qualquer uma das direções. Durante muito tempo, por uma razão de economia, se adicionava chumbo líquido à gasolina. Porém, quando ficou provado que o chumbo, em qualquer quantidade, faz muito mal aos humanos (e após muita luta contra a indústria automobilística), abandonou-se o uso deste metal na gasolina. Eis uma solução por abandono moderado. Porém, após um tempo, concluiu-se que a queima da gasolina é nociva para a atmosfera terrestre e que os combustíveis fósseis não durariam eternamente. Uma solução imersiva foi o desenvolvimento de biocombustíveis, como etanol, para ser misturado à gasolina. Como o etanol tem origem vegetal (a cana-de-açúcar, entre outros) o problema da renovabilidade foi resolvido. No entanto, o problema ambiental talvez tenha sido ampliado. A demanda por grandes quantidades de um só vegetal incentiva a monocultura, desmatamento de florestas e corrosão do solo. No fim, temos o sucesso fracassado do abandono moderado e o sucesso fracassado da imersão moderada.

Em situações como essa, os dois tipos de personalidades encontram evidência para corroborar sua opção e criticar a oposição. Os abstinentes veem no sucesso do abandono a prova de que a esperança está na abstinência extrema, sem reconhecer as limitações desta opção apontada pelos imersivos. Para estes um mundo sem mobilidade tem mais a perder do que um mundo sem gasolina. Os imersivos veem no sucesso da imersão uma prova de que, com mais pesquisa, novas soluções aparecerão. A isso os abstinentes retrucam dizendo que a tal solução só vai gerar um problema ainda maior. Não acredito que haja uma resposta definitiva, mas, o que nenhum dos lados tende a admitir de primeira, parece ser o mais provável. O abandono total só vai acontecer se houver uma opção alternativa de eficiência comparável.

O terceiro exemplo chega mais próximo ao assunto do blog. O altruísmo eficaz, que incentiva a doação de parte da nossa renda para acabar com a pobreza, advoga, principalmente, dois estilos de vida opostos. Um deles é o 'ganhar para doar' (earning to give), no qual se incentiva os altruístas a seguirem carreiras altamente lucrativas (como tecnologia, advocacia ou o mercado financeiro) para terem muito o que doar. A crítica de índole abstinente a esta opção é que, muitas vezes, estes empregos parecem estar diretamente relacionados com a criação de desigualdade no planeta. Porém, a contrarresposta também é pertinente. O fato de que um altruísta eficaz vai ocupar aquele cargo retira um inescrupuloso de uma posição importante e pode contribuir para a mudança na ordem mundial.

A outra opção de estilo de vida é o 'poupar para doar' (not-spending to give). Nesse caso, a opção é por um estilo de vista bem simples que permita, mesmo com um salário moderado, que uma quantia relevante seja doada. A oposição imersiva a esta opção é que a quantia doada será muito menor. Um poupador que doa 90% do seu ganho, normalmente, vai doar menos, em absoluto, que um ganhador que doe 20% do seu salário. Em vista dos benefícios que a ajuda humanitária causa, esta diferença não pode ser ignorada. A resposta imersiva a isto é que os trabalhos mal remunerados, normalmente, são estratégicos para a formação de opinião pública (professores, pesquisadores e etc.). Assim, ao convencerem um grande número de pessoas a aceitarem o altruísmo eficaz, eles podem aumentar o impacto da sua atuação.

Soluções para vários problemas podem ser pensados nesse paradigma. Por exemplo, solucionar o problema das mortes no trânsito inventando carros que se auto-dirigem ou com políticas que incentivem os humanos a abandonarem comportamentos arriscados. Resolver o aquecimento global com soluções engenhosas como uma camada de ozônio artificialmente criada ou com abandono de comportamentos que geram externalidades muito altas como viagens aéreas ou uma dieta carnívora. Curar a malária inventando uma vacina ou usando redes para impedir o contato com o mosquito. A dificuldade é que se pensarmos em um mundo de recursos escassos as duas estratégias competem. Por exemplo, o dinheiro gasto na pesquisa  de uma vacina poderia ser usado na compra de redes. A pesquisa é uma aposta que pode não dar em nada ou pode gerar uma solução definitiva. As redes, opção conservadora, tem resultado positivo e imediato, fácil de mensurar, mas limitado. A tendência, se pensarmos na humanidade como um todo, é escolher um pouco dos dois e, talvez, sem termos consciência disso (já que no nível do indivíduo cada um tem uma preferência), esta não-radicalidade provocada pela união de ideais radicalmente opostas, seja a melhor alternativa mesmo.

Não tenho resposta para escolher um ou outro, mas não acho que seja um caso de suspender o julgamento com a premissa de que um não faz mais bem ou mal do que o outro. Se popularidade for um bom indício, o ganhar para doar é o responsável pela maior atenção da mídia ao altruísmo eficaz. Por enquanto, eu sigo no poupar para doar, mas admito que é muito mais porque se adequa ao meu tipo de personalidade do que quaisquer outras, das muitas, explicações racionalizantes que eu possa usar para me justificar. Entre estas, as mais convincentes, atualmente, são a ecológica e ideológica. Tento deixar a menor marca de carbono possível na terra e também evito participar de relações mercantis que contribuem para exploração de seres humanos e animais. Por exemplo, reduzi todos meus eletroeletrônicos para um laptop. Mas isso só é possível porque o laptop me serve de TV, som, leitor e editor de textos, telefone... O ponto é que muitos tiveram que aprofundar no problema para possibilitar minha simplificação. Minha dúvida, então, é se este é um daqueles casos em que a gente deve aproveitar as nossas forças ou deixar de ser refém delas.


*Agradeço ao José Oliveira, que (como sempre) fez comentários que me ajudam muito a melhorar o texto.