Um elogio às pequenas ações diárias








Introdução
No que se segue pretendo defender a importância da pequena mudança no hábito do indivíduo como fator desencadeador de mudança social e política em uma sociedade. Esta defesa é pertinente porque, assim como a história e a mídia tradicional, também a juventude inquieta com a tradição tende a dar muito mais importância aos grandes atos. Esta importância é desmesurada em vista do fato de que o valor dos grandes atos está justamente em desencadear pequenas mudanças.

Movimentos de mudança social podem ser divididos em dois grandes momentos. Primeiro, é preciso 1) ganhar vista para, então, 2) ser estabelecido. 1) depende de grandes atos, mas, além da visibilidade, não traz grandes benefícios. É como se fosse o sistema de partida elétrica de um carro. Ele dá a ignição mas é insuficiente para colocar o carro em movimento. 2) consiste em pequenos atos, é essencial para a realização da mudança e, mais importante, pode inclusive prescindir de 1). Em suma, 1) precisa de 2) mas a recíproca não é necessária. Pode-se, por exemplo, fazer um carro dar a partida no tranco para, então, colocá-lo em movimento propulsionado. Vamos a um exemplo histórico dentro da área discutida.

Exemplos
O dia é primeiro de dezembro de 1955. Rosa Parks, uma negra em seus 40 anos que voltava do trabalho, se recusa a ceder seu assento no ônibus para uma pessoa branca. Em cumprimento da lei o motorista chama a polícia e a polícia prende a mulher. O caso leva Martin Luther King Jr. a fazer um discurso exaltado. “Chega um tempo em que as pessoas se cansam de ser esmagadas pelos pés de aço da opressão.” O discurso de Luhter King foi um evento do tipo 1) enquanto a senhora Parks realizou uma ação do tipo 2). O discurso é uma exortação ao direito de realizar o ato realizado sem retaliação. Nesta relação entre os dois se vê a vantagem das pequenas ações de estabelecimento. Estas já são, em si mesmas, uma realização daquilo pelo que lutam. É claro que não existe a necessidade de se escolher um dos dois. A sequência do movimento apresentou vários discursos e inúmeros pequenos atos. O ponto é que para se estabelecer é preciso passar dos grandes atos às pequenas ações. Após o sucesso do movimento os pequenos atos seguem sendo realizados diariamente.

No caso do movimento pelos direitos dos negros nos EUA é difícil mensurar os impactos dos grandes atos e das pequenas ações. Para tanto, podemos recorrer a um movimento atual, o vegetarianismo. Para não entrar na discussão de que os animais merecem consideração moral, vou analisar o caso a partir de um viés ecológico. Uma dieta vegetariana causa um impacto ecológico bem menor que uma dieta carnívora. 25% dos gases danosos emitidos na atmosfera vem da agricultura animal. Em tempos de mudança climática uma maior adoção do vegetarianismo pode ser defendida como uma parte da solução. Também neste movimentos temos espaço para 1) grandes atos de visibilidade e 2) pequenas ações de estabelecimento. Um exemplo de 1) é a chamada 'meatless monday' (segunda sem carne). Paul McCartney é o garoto propaganda da ação que pretende mostrar que é possível (e gostoso!) fazer refeições sem carne. O exemplo de 2) é a pessoa que deixa de comer carne. O exemplo é tão banal que parece inútil, isso até olharmos os números. Um vegetariano evita a emissão de 1,5 toneladas métricas de CO2 por ano. Isso equivale a um carro que anda 3.571 milhas ou 169 galões de gasolina ou 1.611 pounds de carvão queimados ou ao CO2 absorvido por 1.2 acres de floresta. Neste caso, o grande argumento em favor de ações de visibilidade como 1) é que elas levam a 2). 2) é importante porque já traz em si a realização da mudança. Além disso, se uma pessoa muda seu hábito ela também pode levar outras a mudarem de modo que 2), assim como 1), também leva a ampliação de 2).

Acredito que a mesma postura tem que ser tomada em relação à desigualdade. Muito se faz para que esta mudança ganhe visibilidade. A Oxfam mostrou que as 85 pessoas mais ricas do mundo tem a mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial. A notícia ganhou as manchetes dos jornais, mas quais foram suas consequências? Isso pode ter o problema de polarizar a questão colocando a responsabilidade de tudo nessa pequena parcela da população. Basta ir aos comentários deste tipo de matéria para ver coisas do tipo: “reis e camponeses, foi bom ter saído deste sistema, certo? Não, espera, ainda é a mesma coisa.” ou “Eles reuniram armas e exércitos para garantir que isso não mude” ou “se nós redistribuíssemos a riqueza deles, eles logo a tomariam de volta.” Mas, em vista dos extremamente pobres, faz sentido mesmo esta divisão entre nós (os meio ricos) e eles (os muito ricos)?
Dan Ariely tem um experimento muito interessante sobre a corrupção. Ele deu um teste aos participantes que, eles mesmos, após responderem, deveriam corrigir e passar os resultados ao examinador. Assim era fácil roubar, além disso, quanto mais alguém acertava, mais ganhava. O resultado foi que uns poucos roubaram muito, outros poucos não roubaram nada e a maioria roubou uma quantidade mediana. No entanto, no final, a soma do roubo dos medianos gerava um rombo maior que a dos poucos que roubaram muito. É claro que há diferenças entre os dois casos, mas uma coisa não pode ser questionada. Pequenas ajudas mensais feitas regularmente pela parte da população que ganha uma renda mediana também são suficientes para acabar com a pobreza mundial. Neste quadro, se o problema é de distribuição de renda, nós também temos responsabilidade. Peter Singer tem um artigo interessante que explora quanto cada um deve doar.

Aplicação
Após este elogio às pequenas mudanças individuais diárias quero aplicá-las a casos práticos de movimentos que emergem atualmente no Brasil.

1) O exemplo mais geral é a chamada ocupação do espaço público. Por todas as cidades do país acontecem eventos artísticos nas ruas reclamando o uso do espaço público pela população. Estes eventos são ótimos mas continuam sendo um estado de exceção. Para o movimento deixar ser um movimento e virar rotina é necessário que quem gosta da proposta de tais eventos comece a usar o espaço público quando não há eventos. É preciso começar a ir tomar o café da manhã de um domingo qualquer no parque com a família, por exemplo. Em vez de pensar em ocupar a cidade, visto que ocupação tem um tom temporário, seria preciso pensar em usar a cidade.

2) O outro exemplo é a melhora do trânsito. Ir uma vez por mês passear com os amigos de bicicleta em um grande evento ajuda a trazer visibilidade, mas para estabelecer a mudança é necessário que a bicicleta passe a ser usada na rotina, para ir ao trabalho ou à universidade, por exemplo.

3) Relacionado ao trânsito está o movimento pelo transporte público gratuito. Nesse caso o ato de pular a catraca em uma manifestação traz visibilidade, porém pular a catraca diariamente parece difícil de ser realizado sem que cause um grande custo para quem o fizer. Neste caso a mudança tem que ser mais política mesmo. A necessidade de estabelecimento, porém, se aplica à mudança política. Além de ocupar a câmara dos deputados em uma ocasião especial, parece necessário fazer da frequência às reuniões abertas ao público uma rotina.

4) O caso das ocupações de terrenos e prédios abandonados por famílias sem casa consiste em uma ação de estabelecimento, já que pede por comprometimento diário. Seria como pular a catraca todos os dias. Da mesma maneira, a posição é arriscada para quem a realiza (por isso, quem realiza é quem não tem outras opções mais viáveis). Nesse caso, quem não está na situação mas reconhece seu mérito deve apoiar e suportar diariamente a causa.


5) Movimentos de direitos civis contrários ao machismo, racismo e homofobia também precisam ser realizados em ações de estabelecimento. Principalmente nestes casos que já têm muita visibilidade é que se faz necessário certificar para que seus princípios guiem todo tipo de pequenas ações que incorremos diariamente. Sair de topless na ocasião especial da marcha das vadias não traz uma contribuição direta para a mudança do hábito. Da mesma maneira, sair na marcha LGBT ou admirar uma celebridade negra sem ter amigos gays ou negros não vai mudar muita coisa.

A nossa copa do mundo








O que não vou discutir
Tudo aquilo que todos discutem, mudando de opinião de acordo com o editorial que seguem, mais à direita ou esquerda. Em miúdos, não vou tratar, a) se a copa no Brasil é boa ou ruim, b) se há corrupção nas obras, c) se os estádios vão servir após o término do evento, d) seu impacto social, e) a isensão fiscal da Fifa e etc. Estas questões são muito importantes, provavelmente as mais importantes, e por isso são muito tratadas. Exemplos com bons argumentos a favor e contra estão em vários endereços. O assunto aqui, por outro lado, é mais rasteiro e menos polêmico. Quero apenas pegar a questão da copa para analisar opiniões que já possuímos à luz da maneira em que agimos. Se eu tiver sucesso espero mostrar que a gente tem que adequar um pouquinho nosso comportamento para agirmos de maneira coerente com o que acreditamos ser certo.

O que todo mundo acha
É consenso que a Copa, um evento esportivo, é menos importante que educação e saúde. Com isso, tanto quem critica quanto quem a apoia, concorda. Quem critica acha que é um absurdo o governo gastar 33 bilhões de reais num evento esportivo enquanto este dinheiro poderia ser aplicado em áreas que carecem de investimento como a educação e a saúde. Quem apoia a copa defende que uma coisa não tem a ver com a outra, já que o dinheiro gasto não será retirado dos fundos da saúde e da educação. A postura do governo também está de acordo com esta unanimidade já que ele investe 123,6 bilhões de reais por ano em saúde (IBGE, 2009). Isso quer dizer que, para o governo, a educação da população é quase quatro vezes mais importante que a copa do mundo. Mas e pra gente?

A nossa situação é ambígua. Pra gente a saúde parece ser um pouco mais importante que a diversão. Isso porque cada brasileiro gasta, em média, 1,5% da sua renda com recreação e 1,6% com saúde. Mais interessante ainda são os pontos em que esta equiparação é contraditória. Em 2007, por exemplo, o gasto médio do brasileiro com cigarro foi de 15,81 reais por mês enquanto o gasto com plano de saúde foi 15,35 reais por mês. Uma vez que 50% de quem fuma vai morrer por causa do cigarro, as chances são grandes de que, se a gente fosse o governo, a aplicação da verba pública estaria em uma situação ainda pior.

Racionalizar os gastos
O primeiro ponto que este argumento traz para as finanças pessoais é um convite a algum grau de racionalização. Talvez uma boa estratégia de investimento seja: usar o nosso dinheiro um pouco como achamos que o governo deveria aplicar as verbas públicas. Se você fosse o governo o que faria com os 15 reais mensais que gasta em cigarros (ou diversão)?

Alguns devem estar pensando que não somos como máquinas e que, nem se quiséssemos, conseguiríamos reduzir nossas despesas apenas ao que é útil. Isto provavelmente está certo. E mais, é preciso reconhecer que este ponto se aproxima bastante de quem defende a copa como um evento benéfico para o país. De fato, a gente não precisa só de educação e saúde, ainda que seja isso o que a gente precise com mais urgência. Ademais, um evento de grande porte, ainda mais numa economia global, pode sim desencadear algum retorno benéfico. É difícil saber o que é útil uma vez que o que parece desperdício tem chances de acabar se provando lucrativo no futuro. Diante disso o comprometimento não precisa ser total. A gente pode sim equilibrar as finanças a partir de um olhar mais atento ainda que deixe espaço para deslizes necessários.

Mas eu não sou o governo
A primeira objeção que a gente faz diante da analogia apresentada é que o indivíduo tem prioridades totalmente diferentes do governo. Mas se o governo governa para população e a população é constituída de indivíduos, em alguma medida, suas prioridades devem se entrelaçar. Por exemplo, a saúde da população é a mesma coisa que a soma da saúde dos indivíduos. Se o governo deve se ocupar desta saúde porque o indivíduos não deveriam fazer o mesmo?

Os números também comprovam isto. Apesar do Brasil possuir um sistema de saúde pública, a população gasta mais com saúde do que o governo. Em 2009, por exemplo, gastamos 157 bilhões de reais em saúde (IBGE). Isso quer dizer que, nós não só agimos como o governo, mas também também agimos no lugar do governo quando reconhecemos que ele falha em algum ponto. Em outros termos, os indivíduos tanto aceitam gastar como o governo quanto se comprometem a substituí-lo caso ele não funcione. A questão que resta, então, é se a nossa obrigação é substituí-lo apenas quando ele falha com a gente, ou também quando ele falha com os outros.

Moralizar os gastos
Ao diferenciar governo e indivíduo, a gente tende a ser liberal com o indivíduo e conservador com o governo. A pessoa pode fazer o que quiser com o seu dinheiro enquanto o governo tem que fazer o melhor para a população com a verba pública. Deste ponto de vista, por exemplo, quem quiser que gaste 500 reais para assistir um jogo da copa. No caso do governo, por outro lado, este mesmo tipo de desperdício é visto como imoral. Mas esta diferenciação faz mesmo mais sentido que a analogia?

Imagine que você sofre um acidente na ida para o jogo da copa. A ambulância pública não chega. Você não tem condições para acionar o seu plano de saúde privado. Um médico, então, que também está a caminho do jogo, pode salvá-lo, desde que aceite perder o ingresso comprado para o espetáculo. Existe uma outra ação correta para ele fazer além de salvar o estranho, que neste caso acontece de ser você?

Felizmente a história não passa de uma hipótese que provavelmente não se realizará. Pelo menos não com você. Devemos nos considerar afortunados pois estamos mais próximos da posição do médico do que do acidentado. Nós podemos salvar em vez de precisar sermos salvos pois com uma pequena parte da nossa renda a gente pode sim melhorar a vida de muita gente que, por uma questão acidental, não compartilha dessa nossa posição confortável. Com 50 Reais a Fred Hollows foundation realiza uma operação de catarata que recupera a visão de uma pessoa. Será que um jogo da copa vale mais que a visão de 10 pessoas?

Conclusão

Uma teoria ética é como uma passarela, há um custo pelo benefício de passar por ela. Se o custo for muito grande, a gente acaba preferindo o risco de evitá-la. O pedido aqui, entretanto, é bem pequeno. A gente cobra do governo o que achamos que é certo, mas, muitas vezes, esquecemos de ver se a gente age como achamos que é certo. Então, porque não canalizar um pouco da crítica a má gestão de recursos por parte do governo para pensar como a gente distribui a nossa renda. Assim não estaremos nos evadindo ao jogar a responsabilidade para os outros nem nos comprometendo muito a ponto de tornar nossa rotina insuportável. É nesse sentido que aplicar a crítica que fazemos aos outros no nosso comportamento pode nos ajudar a viver uma vida um pouco mais coerente com o que acreditamos. Talvez seja hora de considerar investir um pouco do excesso da sua renda no bem-estar social dos mais necessitados.

Quem ainda acha que apenas as questões que não foram tratadas aqui são importantes, que o problema é estrutural e exige mudanças políticas radicais, convém fazer um exercício. Quantas mudanças políticas estruturais você estima que vai provocar ao longo da sua vida? Em termos práticos, alguém acredita que não vai ter copa? E se não tiver, o dinheiro gasto será revertido para a saúde ou educação? De modo que esse tipo de comportamento acaba sendo um escape para a gente seguir a vida como está sem achar que estamos contribuindo para o estado injusto das coisas. Mas, na verdade, a nossa preocupação conceitual e indiferença prática contribui sim. Uma maneira imediata de mudança, com resultados verificáveis, é o investimento da sua renda pessoal em uma causa que ache justa. Agora é só começar.

Medidas Preventivas








Introdução
A gente responsabiliza as autoridades públicas pelas mortes causadas pelas chuvas de verão no sudeste do Brasil porque elas poderiam ter realizado medidas preventivas contra estas tragédias previsíveis. Portanto, a gente reconhece que 1) que a prevenção é a medida correta e 2) que o governo falha em realizá-la. Mas o que nos escapa é que muitas vezes agimos como o governo. Quando vemos um pedinte miserável sempre temos o impulso de oferecer alguma ajuda imediata, porém também falhamos ao dar o passo para as medidas preventivas. A solução seria simples. Basta fazer desse tipo de ajuda uma contribuição constante para algum programa capaz de retirar permanentemente as pessoas de uma condição miserável de vida.

A tragédia
Eu escrevo esse ensaio algum tempo depois das enchentes causadas pelas chuvas de verão no sudeste brasileiro. Agora, março de 2011, a tragédia está virando estatística. A cobertura da imprensa mudou da exposição dos dramas pessoais para a apresentação de dados numéricos. Imagens de pais desesperados como Wendel Cunha (33) à procura de seus filhos desaparecidos vão logo se transformar em mais alguma unidade adicionada ao número de vítimas da maior tragédia causada por chuvas na história do Brasil. Até agora são 905 mortes, 8.746 desabrigados e 20.790 desalojados. Como nós não somos tocados por números, em poucas semanas a emoção causada pela tragédia deve se extinguir. Até este momento as doações têm sido altas, mas a tendência é que elas logo parem. De maneira análoga não deve demorar muito até o governo se esquecer da necessidade de medidas estruturais preventivas.
Bom, pelo menos até o ano que vem, quando as chuvas sazonais vierem outra vez. Então, novas versões dos mesmos dramas serão contadas e os cidadãos que doaram no ano anterior vão se apressar em condenar com veemência a negligência do poder público. Os mais exaltados vão até mesmo chamar os políticos de assassinos. Eles não estão de todo errados. Nós tendemos a concordar que quem pode prevenir uma morte (sem pôr em risco a sua) e não o faz, deve ser julgado responsável pela omissão. Para ver é isso é só pensar num drama pessoal. O governo negligente é como um cidadão que vê uma criança se afogando, sabe nadar, mas não faz nada para ajudar. A minha intenção, no entanto, não é criticar o governo em defesa das vítimas das tragédias. Estas críticas são tão recorrentes quanto as chuvas de verão, mas, diferente das enchentes, elas não parecem fazer muito efeito. Por isso vale tentar uma estratégia oposta. Que tal questionar os doadores esporádicos à luz das estatísticas?

Os números
A crítica não é a doação excepcional em si. Situações extremas pedem por ações imediatas. Doar para remediar faz sentido. O exercício, porém, será o de dar um passo a mais e tentar chamar a atenção do doador esporádico para o que ele já sabe. Assumo que a maioria já sabe em vista de três fatores. 1) A comoção pelas mortes, 2) a prontidão em ajudar e 3) a crítica à negligência dos governos frente a uma tragédia anunciada. O que parece mais difícil de ver é como estes três pontos vistos em conjunto apontam para uma possível incoerência na nossa atitude. Talvez seja válido usar as estatísticas para fazer reconhecer esta negligência individual.
Se nós tomamos a maior tragédia provocada pelas chuvas no Brasil, para nivelarmos por cima, teríamos cerca de 1.000 mortes por ano. Sem dúvidas, um acontecimento que mata 1.000 pessoas e desabriga 30.000 por ano merece ser considerado com seriedade. Mas diante destes números o que dizermos dos 11.2 milhões de brasileiros que estão passando fome? Se os brasileiros famintos fossem uma nação eles ocupariam o septuagésimo primeiro lugar na lista dos mais populosos, à frente de Portugal, por exemplo. Apesar deste número impressionante, pessoas famintas não são uma notícia constante nos telejornais. A maioria deles não tem seu drama pessoal contado pela imprensa, mas este é outro problema. O objetivo deste ensaio não é ser mais uma crítica a mídia de massa, mas sim persuadir indivíduos que precisam apenas dobrar a esquina para trombar com algum drama pessoal relacionado à fome.

O quadro atual
Nós, como todos os que se comovem pelos dramas e tragédias com os quais temos contato direto ou por notícias, concordamos que é preciso ajudar quem precisa. Além disso, estamos dispostos a ajudar, como comprova o grande número de doações em casos de tragédias ou de pessoas que dão esmola nas ruas. Sabemos ainda, já que criticamos o governo, que o tipo mais importante de ajuda são as medidas preventivas. E, por fim, reconhecemos também que 12 milhões de vítimas da pobreza é mais do que suficiente para caracterizar uma tragédia, mesmo sendo uma estatística que não vira notícia. Nesse quadro, então, o que nos falta é reconhecer que ao doarmos esporadicamente estamos agindo como o governo que se esquece da prevenção e gasta o dinheiro de maneira ineficiente em medidas de reparação posterior.

Conclusão

Como a maioria eu era (e ainda sou) mais uma voz criticando o poder público por falta de programas preventivos. Como quase todo ser humano eu sou tocado pelas visões de pessoas em condições miseráveis de sobrevivência. O que eu levei tempo para perceber é que a minha atitude era como aquela que eu criticava no governo. Eu ajudava quando a oportunidade se mostrava na minha cara, mas negligenciava o caso mais numeroso que pede por cuidado diário, planejamento e prevenção. Ajuda esporádica em resposta a dramas pessoais não é suficiente se você assume uma perspectiva global. Negar ajuda ainda é antiético mesmo se você só conhece as vítimas por números. Uma vez que a gente reconhece isso a doação mensal se mostra como um passo irrevogável. Sem dramas particulares ou necessidade de comprometimento político, é só uma questão de considerar a pertinência de dedicar uma parcela da sua renda mensal pessoal para o bem-estar coletivo. 

Sobre o direito à vida





Dois casos
Uma manhã ensolarada de domingo. Nenhuma dúvida paira no céu. Um dia perfeito para encontrar amigos e celebrar a vida. É exatamente isto que você vai fazer, à sua maneira, num protesto contra o aborto. Você encontra com o seu grupo em frente a uma clínica médica. Cada cliente ou empregado que passa pela porta faz vocês gritarem seus slogans mais alto. Eles não parecem se incomodar muito. De repente um amontoado de pessoas começa a sair correndo do prédio. Eles gritam. Após um momento de medo você entende a situação. Nas suas caras não há raiva, apenas medo. A clínica está pegando fogo! Uma mulher vem em sua direção gritando que o seu bebê ficou lá dentro. Você corre para a clínica enquanto o fogo se espalha. Um grito contínuo vem de um quarto. Um chute para abrir a porta e você vê, de um lado, um bebê chorando, de outro alguns tubos cuja etiqueta indica se tratarem de embriões. Sem hesitar você pega a criança e deixa os embriões. Quando você sai do prédio em chamas a mãe do bebê se aproxima numa atitude subserviente de gratidão. Você não consegue evitar o clichê para mitigar o desconforto de ser tratado como um herói. Eu só fiz o que qualquer um faria.

Uma noite de sábado amena. O céu está cheio de estrelas. É uma noite perfeita para encontrar os amigos e celebrar a vida. É por isso que você, apesar de se sentir um pouco enjoada, decide sair de casa. A noitada é longa. Você fala, ri, bebe e fuma bastante, tanto em qualidade quanto em quantidade. Quando você finalmente está voltando para casa aquela pequena náusea reaparece de maneira poderosa. O hospital se apresenta como um destino inevitável. Há um branco na sua memória. Na manhã seguinte, após identificar os lençóis brancos entre paredes brancas você se lembra de ter ido a um hospital, nada além disso. Um médico aparece para te dar algumas informações. Ele escolhe as palavras com cuidado para informar que você sofreu um aborto na noite passada. Você diz que não sabia da gravidez. Sem fazer concessões por educação, ele coloca a responsabilidade do problema no seu comportamento excessivo. Você se sente culpada. Para mitigar o desconforto de ser uma vilã você repete um clichê para si mesma. Se eu soubesse eu cuidaria do bebê.

Introdução
Se as estórias acima soam literárias em demasia, é por uma tentativa de evocar empatia humana em situações hipotéticas. Ao mesmo tempo o abuso do pronome da segunda pessoa do singular tenta misturar leitor e personagem para provocar algum questionamento acerca das suas intuições. Ainda assim, elas podem ser consideradas filosóficas na medida em que o seu cerne está nos clichês e na contradição que deles surge. A estrutura espelhada de apresentação é um convite para comparar as situações. Na primeira situação, normalmente, não há dúvidas sobre salvar o bebê ao invés dos embriões enquanto que, na segunda, a tendência é culpabilizar quem falha em cuidar de um embrião.

Concepcionismo ou não
A primeira situação apresenta um dilema em si mesma apenas se, como a personagem, o leitor acredita que um embrião já merece o direito humano à vida. Esta posição é chamada concepcionalismo. O caso narrado encena um de seus problemas na medida que ao salvar o bebê no lugar dos embriões o concepcionista estaria escolhendo salvar uma vida no lugar de várias vidas. Traduzida nestes termos a escolha que parecia intuitivamente correta começa a soar errada. Como a gente tende a continuar querendo salvar o bebê, a saída é questionar o concepcionalismo. Mas não é tão fácil de convencer a si mesmo. Parece necessário, então, estabelecer um critério razoável de acordo com o qual os direitos humanos não seriam aplicáveis aos embriões. Depois de alguma pesquisa a maioria pode encontrar uma solução possível num modelo ético dividido em dois níveis. Primeiro, para ser sujeito de consideração moral, seria preciso que alguém seja, ao menos, capaz de sentir dor. Em segundo lugar, para ter os direitos humanos plenos, seria preciso ainda ser racional e consciente. O resultado parece funcionar. Bebês sentem dor, embriões não, portanto seria preferível salvar um bebê em vez de alguns embriões.

Anti-concepcionismo ou não
Agora deveria ser fácil defender a legalização do aborto. Porém, após toda a racionalização prévia a tendência ainda é de se sentir culpado pelo maltrato do embrião descrito na segunda história. Até um militante pró-aborto concordaria que o comportamento excessivo que causa a morte de um filho desejado caracteriza uma falha moral. Mais alguma pesquisa leva a descoberta que as pessoas já tentaram explicar esta sensação. Uma das respostas mais convincentes afirma que embriões são seres humanos em potencial. Como tais, eles mereceriam possuir os direitos humanos. No entanto, após a conclusão extraída da primeira história não parece possível simplesmente voltar e aplicar direitos humanos plenos aos embriões. Esta é uma das maldições (para quem gosta de metáforas religiosas) ou efeitos colaterais (para quem prefere metáforas médicas) do conhecimento. Mesmo se você tenta abortar um pensamento, não há mais volta possível a um estágio anterior à sua consideração. Uma saída é seguir em frente para tentar justificar as intuições nas duas situações. É possível salvar o bebê, os embriões e a nossa consciência?

Uma solução
Talvez a impossibilidade de abandonar as conclusões prévia possa servir de guia rumo a uma resposta um pouco mais satisfatória. Os níveis de consideração moral parecem ser uma maneira elegante de explicar direitos diferentes para diferentes tipos de existência. Se alguém é perturbado pela dor, ele deve ter o direito de não senti-la. Se alguém é autoconsciente a ponto de relembrar experiências passadas e projetar experiências futuras, estas devem ser consideradas ao se estabelecer os seus direitos. Se for este o caso, uma vez aceito o passado e o futuro como bases para consideração moral parece pertinente levar em conta também a potencialidade já que esta trata de prováveis realizações futuras. Assim, seria necessário adicionar mais um nível no modelo de consideração moral. Se alguém tem uma potencialidade indolor e inconsciente de se tornar um organismo capaz de sentir dor, ou de sentir dor e ter consciência de si, do passado e do futuro, este deve receber alguns direitos relativos àqueles que receberá no futuro. Desta maneira surge uma justificativa para se defender o meio termo. Só porque alguém ainda não tem os direitos que vai ter no futuro não quer dizer que ele não tenha direito algum. Para verificar esta hipótese convém aplicar o modelo às situações hipotéticas apresentadas no início bem como ampliar a aplicação a situações mais realistas.

Conclusão
Se a potencialidade for considerada o embrião humano teria que ter garantido alguns direitos a fim de tornar possível seu desenvolvimento pleno. Portanto, o comportamento excessivo que provocou o aborto na segunda história seria, tal qual a intuição, ainda uma falha moral. Por outro lado, os direitos dos embriões não seriam iguais aos do bebê porquê um embrião ainda não é capaz de sentir dor. O que está em harmonia com a preferência por salvar um bebê no lugar de alguns embriões. Até agora tudo bem, mas as coisas se tornam mais interessantes quando estas conclusões extraídas de situações hipotéticas são aplicadas a casos mais realistas. O modelo de consideração moral em três níveis é discreto o bastante para apoiar, por exemplo, pesquisa científica com embriões. Mesmo se a pesquisa acontece com o custo de intervenções sérias nos embriões o processo é justificável na medida em que tem por objetivo resolver problemas de seres humanos plenamente autoconscientes cujas necessidades especiais tornam sua vida difícil e dolorosa. O modelo também pode justificar o aborto de uma criança indesejada, antes do embrião poder sentir dor, em face das consequências, físicas, sociais e psicológicas, em que a gravidez provocara na vida da mãe.

Em aberto
No entanto, antes de pensar que tudo está bem estabelecido convém seguir adiante nas considerações. Um problema surge de uma outra versão mais elaborada da primeira história. Suponha que ao entrar na clínica pegando fogo você encontra não só o bebê e os embriões mas também uma criança. Se tivesse que escolher apenas um, qual você salvaria? De acordo com o modelo apresentado acima seria correto salvar a criança, e não o bebê, já que ela é capaz de sentir dor e apresenta uma autoconsciência bem mais desenvolvida. Porém não é isso que nossa intuição parece sugerir. A gente ainda tende a preferir salvar o bebê. Existe até um clichê que justifica esta preferência. Como a criança tem mais chances de se salvar por si mesma, deve-se salvar o bebê. É possível aceitar esta preferência sem abandonar o modelo proposto anteriormente? Talvez um caminho seja que o desenvolvimento pleno das potencialidades de alguém aumentem não só os seus direitos mas também as suas responsabilidades. Assim, um adulto teria mais direitos e deveres para lidar do que uma criança e esta teria mais do que o bebê. Mas agora não é há mais espaço para ir adiante. Esta foi só mais uma estratégia literária de acabar logo após prometer uma sequência.