Dar valor ao que é de graça

Histórias:
1) Muitas pessoas têm alguma resistência em concordar com fazer caridade. Uma justificativa muito comum que elas usam para não doar é que quem recebe algo de graça não dá o devido valor e acaba desperdiçando. Como a maioria das opiniões do senso comum, esta não está completamente fora da verdade. De fato, não é difícil para ninguém pensar em uma história pessoal de alguém que não dá valor a algo que ganhou de graça. Um exemplo banal seriam crianças mimadas que não dão o devido valor ao que ganham. Um exemplo político seria dos sem-terra que vendem as terras que recebem na reforma agrária. O exemplo da caridade são pescadores que usam o mosquiteiro antimalária como rede de pesca.

2) Por outro lado, como também é habitual no caso do senso comum, existe uma posição contrária que também tem uma racionalização que pode ser facilmente corroborada por algumas histórias. Trata-se de acusar quem paga por algo de falta de responsabilidade relativamente ao que comprou. Desta perspectiva, quem paga é que não se importa com o que comprou, como se o pagar lhe desse o direito de fazer o que quisesse com isso. Um exemplo banal seria do pai que paga escola, babá e aula particular para não se ocupar da educação do seu filho. A versão política seria o fazendeiro que se vê no direito de não fazer nada com a sua terra, ou desmatá-la toda, porque pagou por ela. O caso da malária seria quem comprou a rede alegar que pode usá-la para pescar, pois faz o que quiser com aquilo que comprou.

A primeira questão a ser resolvida, em ambos os casos, é verificar se o dinheiro é mesmo o motivador de alguma destas atitudes, ou se é apenas a maneira que quem vê de fora usa para entender o que vê. Para isso, vamos ver se temos alguma evidência de que pagar por algo muda nosso comportamento.

Experimentos controlados
1) Num exemplo, houve um experimento em que um grupo de pessoas pagavam $2.50 por cápsula de Veladona e outro grupo pagava $0.10. Nos dois casos se tratava de um placebo para alívio de dor, mas só no grupo que pagou o preço baixo houve pessoas que negaram que o tratamento tivesse efeito (50% dos participantes).

2) Confirmando o caso oposto, outra investigação (.pdf) observou que os pais que deveriam buscar os filhos na porta da escola, após se ter estabelecido uma multa por cada minuto de atraso, estes, em vez de se atrasarem menos, passaram a se atrasar mais. Deste modo, parece que eles se sentiriam como compradores de irresponsabilidade. Confirma-se assim que o ato de pagar tem sim uma tendência a tirar o comprometimento 'moral' de uma relação.

Portanto, há evidências de que pagar por algo muda mesmo a nossa relação com essas coisas. E mais, a mudança, dependendo da situação, vai nos dois sentidos, a saber, o de valorizar mais aquilo que se pagou e o de achar que pode se desprezar aquilo que se pagou. Não há um problema inerente em atestar os dois casos. O ser humano é complexo e incoerente, logo, nada impede que ambas as posições tenham um pouco de verdade. Em vista disso, podemos aventar soluções embasadas em cada tipo de situação, que, se aplicadas corretamente, solucionariam o problema.

Soluções
Se este for o caso, 1) remete a uma solução monetária. Para fazer as pessoas valorizarem o que lhes for dado, basta cobrar uma taxa, ainda que seja simbólica.
Já 2) seria solucionado estipulando uma punição que não pode ser paga em dinheiro pela falta de responsabilidade com o que lhe pertence.

Experimento de campo
Um experimento no âmbito da ajuda humanitária confirma o fracasso destas soluções. O IPA fez uma pesquisa para ver que caso geraria o maior uso de mosquiteiros antimalária. Para tanto, separaram três regiões similares e aplicaram três políticas diferentes. Em uma, eles doaram os mosquiteiros, em outra cobraram um preço módico subsidiado e, por fim, cobraram o preço de mercado. Os resultados mostraram que a região na qual os mosquiteiros foram doados foi aonde o uso foi maior.

Seria interessante saber se os mosquiteiros comprados a preço módico ou real não foram mais usados para outros fins do que os doados. Mas, para contemplar o ponto de vista de quem defende que pagar leva a mais comprometimento, vamos supor que quando se paga pela rede, o uso diminui em quantidade, mas aumenta em qualidade. Ou seja, 100% das redes compradas são usadas como mosquiteiro enquanto apenas 80% das doadas são usadas corretamente.

Escalonar
Há quem argumente que nem o uso 'incorreto' é problemático já que, como um pescador disse, 'é melhor morrer de malária do que de fome'. Porém, no caso de uma doença epidêmica e de uma política pública de distribuição de redes deve-se considerar que quem não usa a rede não está só se prejudicando, mas prejudicando toda comunidade. Isso porque se ele contrai a doença, outros mosquitos que não tinham o vírus podem picá-lo, pegar o vírus e transmiti-lo a outras pessoas. Nessa situação não importam as exceções, quanto mais pessoas usarem as redes, melhor. 80% de redes doadas bem usadas significa, em absoluto, mais pessoas dormindo protegidas do que as 100% bem usadas das compradas. Por isso, nessa situação, não há opção melhor do que distribuir gratuitamente.

Não haver outra opção melhor não quer dizer que não dá pra melhorar a opção. Se for para resolver o problema do uso inadequado, a pior intervenção seria cobrar algo pela rede em busca de qualidade contra quantidade, mas podem haver outros meios de se aproximar do 100% de uso. Um outro estudo feito com portadores do HIV em regiões onde a malária é endêmica conseguiu com educação sobre a malária e acompanhamento reduzir em três meses o número de infectados com malária de 60% para 3%.

Um ponto fraco é que este estudo ofereceu educação e acompanhamento, de modo que não há como saber se apenas a educação ou apenas o acompanhamento seriam suficientes para resolver o problema. De qualquer forma parece seguro estabelecer que:

Conclusão
Receber algo de graça diminui a valorização que se dá ao recebido, porém, aumenta o uso do recebido em uma porcentagem bem maior do que a diminuição de valorização. Deste modo, principalmente em casos em que o benefício vai além de quem recebe o bem, se justifica uma política de distribuição gratuita.

Ampliar
Os testes em laboratório como aqueles de Ariely têm a pretensão de capturar algo da natureza humana. Já os estudos de campo controlados são mais específicos em suas conclusões. Ainda assim, parece válido um esforço de extrapolar os resultados.

Esfera doméstica
Primeiro, o caso das crianças. Segundo a conclusão alcançada, sempre que o benefício de ganhar um bem supere o risco do não reconhecimento da sua importância, convém dar-lhes sem cobrar nada em troca.

Por exemplo, aprender inglês em uma idade tenra vai gerar um benefício enorme para o resto da vida do seu filho. Assim, mesmo que ele odeie e despreze a atividade, convém colocá-lo na aula de inglês sem cobrar nada em troca. Ademais, a solução para combater o desprezo seria informação sobre as vantagens e acompanhamento. Por outro lado, uma ida ao parque de diversões que não trará benefícios diretos pode ser uma boa oportunidade para pedir algo em troca para não diminuir seu valor devido à gratuidade. Quem sabe pedir que façam a tarefa de inglês?

Esfera política
A moradia e o acesso a um meio de sustento são reconhecidos como direitos universais dos seres humanos. Portanto, independente da possível desvalorização, parece justificável haver políticas públicas gratuitas ou subsidiadas que garantam ambos às pessoas que, por infortúnios, encontram-se cerceadas desses direitos.

No exemplo prático, a solução para o sucesso da reforma agrária não estaria em cobrar uma taxa simbólica dos assentados. Ainda assim, vender uma terra que lhe foi doada sob a condição de produzir nela, mesmo que a causa da venda NÃO tenha sido o fato de ter sido doada, continuaria sendo errado. Isto porque existem outras famílias que seguiriam as condições, mas que não receberam nenhuma terra. Para evitar isto a solução mais promissora seria prover assistência e acompanhamento que cobre o uso eficaz do benefício ganho. É claro que a estrutura de assistência e acompanhamento tem um custo, mas faz mais sentido cobrá-la de quem tem mais (outros contribuintes) do que dos recém-saídos da condição de sem-terra.

Já no caso daqueles fazendeiros que descumprem as leis por acharem que podem fazer o que quiser emcom sua propriedade, a solução estaria em encontrar uma pena que não pode ser paga por dinheiro. Quem sabe a pena não seria a desapropriação das terras?

As soluções mais adotadas atualmente na questão da distribuição de terras, no entanto, são contrárias às conclusões acima. Uma terra de assentamento vendida é retomada pelo estado, enquanto o fazendeiro pode ser multado por desobedecer à lei ao desmatar à revelia as terras que lhe pertencem.

Exemplo pessoal
Fiquei procurando exemplos pessoais que confirmassem um ou outro caso e achei dois bem próximos. Eu já cursei universidade particular e pública e, contrário ao princípio do pagar parar dar valor, encontrei mais pessoas que levaram a sério a formação na pública do que na particular. Porém, como aqui no Brasil os melhores alunos vão para as públicas, parece ser um caso de amostra enviesada no qual, pagando ou não, eles levariam mais a sério o curso que os outros.


Um caso oposto acontece nas aulas de grego antigo que eu ofereço de graça. Os alunos, em geral, começam muito empolgados, mas, com o tempo, a taxa de evasão é grande. Pode ser por incompetência do professor, mas o fato deles não trocarem de professor aliado à grande taxa de evasão também no curso oficial da faculdade de letras vai contra essa hipótese. Nesse caso minha hipótese tem algo a ver com o dinheiro, já que os alunos, se obrigados a escolher, sempre tendem a preferir fazer os deveres de um curso de outra língua pela qual pagam do que do grego. Não se pode dizer que a preferência é devido à maior utilidade de se aprender uma língua moderna, pois os alunos que estudam filosofia grega, o que faz do grego antigo muito útil. De qualquer forma estou pensando em introduzir alguma cobrança em termos de pontos ou atividades para ver se muda a situação.

Vieses cognitivos a serem evitados


O que é um viés cognitivo?
Um viés cognitivo é uma maneira sistemática (automática) que temos de pensar errado. Como eles estão introjetados no nosso modo de agir é bem difícil de evitá-los. Por isso é importante estar sempre atento à maneira como erramos a fim de, a cada vez, evitarmos o erro.

Uma boa analogia para entender é o da ilusão de ótica. Veja o exemplo abaixo:



Os retângulos do meio têm a mesma cor, mas, dependendo do entorno elas parecem ser diferentes. Mesmo depois de identificarmos que se trata de uma ilusão de ótica, continuamos 'vendo' cores diferentes. Com os vieses cognitivos é a mesma coisa, e o primeiro passo para superá-los é saber que eles existem. Como escreveu Chekhov "o ser humano vai melhorar se souber como ele na verdade é"

Lista de Vieses (em progresso e aleatória):

Viés do Status Quo: 
1) Você concorda que 10% do seu imposto de renda seja revertido em forma de doação a uma ONG séria? A resposta geralmente é afirmativa. 
2) Você concorda em doar 1% da sua renda a uma ONG séria. Aí já é mais difícil de concordar, e, ainda mais, de começar a fazer.

O problema pode estar no viés do status quo, que é a tendência inconsciente de preferir que as coisas fiquem como estão. Você já cresce acostumado a pagar imposto, mas para doar uma parte da sua renda é preciso mudar de concepção. Isso é difícil. O viés é explicável pois, na falta de informação, é mesmo mais seguro manter as coisas como estão (se elas não causam sofrimento). Por outro lado ele é problemático porque essa opção pela segurança acaba impedindo melhoramentos.


Um pouco de perspectiva histórica mostra o quanto é necessário superar o status quo. A escravidão, que hoje abominamos (ainda que não tenha sido totalmente extinta), por exemplo, durante grande parte da história da humanidade, e em várias culturas, foi aceita.


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Viés da confirmação:  
1) Algumas pessoas aproveitam as redes de prevenção ao mosquito da malária distribuídas gratuitamente para usar na pesca em vez de se proteger. 
2) A cobrança de uma taxa ínfima pelos mosquiteiros anti-malária reduz significantemente o seu uso

Se você tem a crença comum de que a gente não valoriza o que vem de graça provavelmente vê na primeira opção um confirmação de que sua opinião está correta. Com isso ignora a diferença entre as duas frases indicada por 'algumas' no primeiro caso e 'significativamente' no segundo. Isso pode ser um problema do viés da confirmação que é a tendência em processar apenas as informações que servem para confirmar nosso ponto de vista. 

As consequências são graves. Pesquisas provam que cobrar por essas redes reduziram seu uso em 60%. Ainda mais no caso da malária, no qual quem não usa a rede prejudica não apenas a si, mas a todos vizinhos, já que o contaminado picado por outros mosquitos acaba virando uma fonte da doença. 


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Heurística da disponibilidade: 
1) Tente se lembrar de três cidades atingidas por atentados terroristas. Fácil, né? 
2) Agora tente nomear três países da região do Sahel que sofrem com a maior crise de comida da atualidade. Mais difícil, né? 

A heurística da disponibilidade é a ilusão de achar que a informação que a gente tem disponível é mais relevante. O número de mortes dos atentados terroristas que fazem tanto escarcéu na imprensa são pouco significativos se comparados com as 18 milhões de pessoas afetadas pela crise de comida no Sahel.

Relacionada a esta heurística está a cascata da disponibilidade, que é a estratégia de repetir uma coisa tanto até ela 'virar' verdade. Por isso o terrorismo é visto como um dos problemas mais sérios hoje no ocidente. Postando aqui sobre temas humanitários até ficar chato a gente tenta balancear a cascata.

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Distância psicológica: 
1) Você é contra o trabalho escravo? Claro!
2) Você sabe que as roupas que usa, os computadores que tem e alguns alimentos que come envolvem, em algum ponto da cadeia, trabalho escravo ou semi-escravo.  Porém,  por que a gente não sente culpa de usar estas coisas? 

Isto é assim porque há uma distância psicológica que quebra a causalidade entre as duas situações. É o viés traduzido no dito popular: 'o que os olhos não vêem o coração não sente'. É por isso que a gente se sente na obrigação de ajudar uma criança em risco de vida na nossa frente, mas não vê problema nenhum em deixar milhões morrerem a uma certa distância

É difícil suprimir a distância psicológica pela emoção, o que está longe sempre vai emocionar menos. É fácil ver sua utilidade, pois, se a quantidade de pobreza no mundo nos afetasse psicologicamente o baque seria tão forte que mal conseguiríamos viver. Porém, isso não é motivo para aceitar a distância psicológica. Através de alguma consideração racional, a gente é capaz de superá-la sem se deprimir e agir de acordo com o que acreditamos, ou seja, que devemos tentar salvar o máximo de pessoas em risco de vida.

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Viés de Agostinho: 
Nas suas confissões Agostinho narra a passagem da adolescência em que ele pede: 'Deus, me dê castidade, mas não agora!'. 


É bem comum essa tendência de transferirmos os encargos presentes para o nosso eu futuro, dando assim tranquilidade ao nosso eu presente – o que vai contra as nossas convicções de consciência (quase) tranquila. É por isso que a gente sempre programa o início da dieta para 'a próxima segunda-feira' para poder comer aquele doce 'agora'. 

As desculpas 'racionalizadas' (ou confabuladas) vão no sentido de que a nossa situação ainda não é estável o bastante, é melhor economizar, existem filhos e, etc... Mas contra isso existem 2 objeções: 


2) Além disso, se não começarmos em alguma altura corremos o risco de nunca começarmos. O Peter Singer mesmo aconselha que se você é adolescente e ainda não tem renda, que assuma o compromisso de doação mensal mesmo assim e à medida que sua renda for aumentando o mesmo acontecerá com sua doação.



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Comportamento de bando: 
Animais sociais tendem a agir em conjunto. Uma teoria que explica isso do ponto de vista do indivíduo tem duas regras simples: a) imitar seus vizinhos b) tentar ir o mais próximo do centro (local mais protegido). Estas duas regras bastam para sincronizar o voo de um bando de pássaros de maneira tão coesa que nos parece coreografado.

Nós somos animais sociais e o comportamento de bando guia muita
s das nossas decisões. Pare para notar o quanto você se parece com seus amigos mais próximos no modo de agir, vestir e nas preferências. 

Apesar de esforços individualistas não há como (e talvez nem porque) abandonar este viés. Porém, uma vez identificado, é possível 1) corrigi-lo e 2) usá-lo em nosso favor, com consciência. O Altruísta Eficaz tenta fazer isso em dois níveis:

1) Ajudar os que precisam é um truísmo consensual em nossa sociedade, portanto só é preciso lembrar os outros dessa opção.
2) Apesar de aceito, o truísmo da ajuda não é um costume para a maioria. Por isso, acaba se gerando um comportamento de bando em que todos aceitam a necessidade da ajuda, mas ninguém ajuda.
Um paradoxo tem o poder de mudar o comportamento. Ao notá-lo e aceitarmos a mudança de comportamento estamos contribuindo para que outros ao nosso redor façam o mesmo.

1') Por outro lado, por estar arraigado, o truísmo da ajuda acaba levando a aceitar qualquer tipo como se tivesse igual valor. Como vemos ao analisar mais de perto os resultados das intervenções, a coisa não é assim.
2') Por isso outra proposta é de ser criterioso no julgamento e distinção de ajudas para melhorar o resultado. Ao fazermos isso ajudaremos os nossos vizinhos a fazerem o mesmo
.

Exemplo:  Recuperar a visão de alguém através da operação de tracoma custa 25 dólares. Treinar um cão guia para cegos custa 42.000 dólares. Com a mesma quantia, você melhora a vida de 1 ou 1.344 pessoas.



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Ilusão de intervenção:
Temos a ilusão de que quando intervimos, os resultados são melhores. A existência desse viés faz sentido, pois é ele que nos 'convence' a tomar uma atitude. Por outro lado, é preciso tomar cuidado, pois esta ilusão pode aumentar as chances de fracasso. Por exemplo:

1) 
Outro caso é da criança perdida que, em vez de ficar num lugar para ser achada, prefere sair procurando alguém, aumentando assim o risco de não ser achada.
2) Um caso é dos goleiros nos pênaltis. Eles preferem escolher um canto para pular, mesmo que as maiores chances de defesa estejam em ficar no meio.

No caso da ajuda o risco do viés da intervenção é pensar mais em quem ajuda do que em quem é ajudado:
1') Costurar um tapete pra ser vendido num bazar de ajuda a uma instituição de caridade traz uma sensação de dever cumprido, mas é muito menos efetivo que uma doação impessoal.
2') Mesmo após a escolha de uma doação impessoal a preferência tende a ser por programas que intervém de maneira mais agressiva ou
criativa, mas isso também não significa ter melhores resultados. Por exemplo, intervenções de introdução ao empreendedorismo agrícola em África se provaram muito menos efetivas que a simples transferência incondicional de dinheiro para pequenos produtores.

Enfim, convém sempre verificar os resultados da intervenção (ainda mais quando a intervenção nos soar totalmente plausível de antemão)


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Efeito culatra: 
Estudos provam que quando se mostram dados que negam a nossa opinião, em vez de aceitarmos, a gente tende é a reforçar nossa negação.

Por exemplo, quem é contra o bolsa-família e vê um estudo que comprova seus impactos positivos, tende a ir ainda mais contra o programa e os dados apresentados. Uma das estratégias para negar os dados é apelar para 'direitos inalienáveis'. Eu tenho que abrir mão do dinheiro que ganhei por mérito próprio para sustentar vagabundos? O que fazer diante disso?

1) Em relação aos outros. Em vez de mostrar os dados que negam a sua posição, pesquisas indicam que mais eficaz para fazer alguém mudar de opinião é pedir que ele explique sua opção até ver que nunca pensara bem sobre o que está defendendo. Quanto seria o dinheiro de que você vai abrir mão? Essa é uma quantia que vai te fazer tanta falta? E o mérito próprio, não teve ajuda da família, da educação da estrutura de transporte, leis e comércio do país?

2) Em relação a nós mesmos, é preciso sempre se policiar diante dos dados que recebemos. Sempre que um artigo contrariar a nossa opinião, convém parar, reler e avaliar as coisas como se a gente não tivesse opinião. Só depois disso é que convém a gente formar (e não reforçar) uma opinião própria. Este artigo defende o bolsa-família, mas ele apresenta dados convincentes ou só anedotas que confirmam minha opinião? Se não há dados, onde posso encontrá-los? Veja análises de programas similares. E sempre procure ver o que dizem os críticos sérios da sua opinião.


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Viés da força direta (ou mão na massa)
A gente tende a super valorizar ações que fazemos com contato direto, para o bem e para o mal. Por exemplo, no caso de um bondinho desgovernado que vai matar 5 pessoas, a maioria das pessoas acha errado empurrar uma pessoa (causando sua morte) para parar o trem (e salvar os outros 5). Ao mesmo tempo, a maioria acha correto puxar uma alavanca que desvie o bonde para um trilho que atingirá outra pessoa (também matando 1 e salvando 5).

Esta diferença, psicologicamente, é válida, mas moralmente não. Por exemplo, imagine matar uma pessoa cortando a sua garganta ou pagar alguém para realizar esse serviço. Os dois atos são condenáveis, mas a perspectiva de ter que fazer com as próprias mãos mexe muito mais com as nossas emoções. Não se tratam apenas de hipóteses absurdas, essa diferença opera na relação que temos com os animais, usando uns para estimação e outros como alimento (matados por outras pessoas).

No caso da ajuda humanitária o mesmo viés, mas em efeito contrário, pode acontecer. Ao simplesmente dar dinheiro para uma ONG eficaz podemos realizar um bem enorme. Por outro lado, ao realizar uma ação com pouco efeito, mas na qual participamos ativamente, como ler um romance para um paciente em coma, nos sentiremos muito mais recompensados. É disso que se aproveitam os projetos de turismo de caridade no qual turistas inábeis realizam um serviço caro e longe do ideal para voltarem com uma história inspiradora para casa.


A dica, então, é desconsiderar o contato como critério de valorização de uma ação. Melhor é pensar nos resultados (compare com o viés da intervenção acima). 

Escondido no compartimento de bagagem

(1) Imagine um navio que sai do porto com 100 passageiros. A sua capacidade de carga é de 10.000 kg. Se a distribuição fosse igualitária, cada passageiro poderia trazer 100 kg em bagagens, mas as coisas não são assim. As bagagens do passageiro mais exagerado somam 4.000 kg. Os 31 passageiros medianos carregam 5.700 kg ou 184 kg cada um. Por fim, temos os outros 68 passageiros que não carregam quase nada, 0,300 kg. Ao longo da viagem, estes 68 percebem que não terão o suficiente para sobreviver muito tempo e começam a oferecer serviços aos outros. Os medianos concordam, mas como não querem abrir mão dos seus bens, eles pagam pelos serviços com tickets que serão trocados no próximo porto. A troca de tickets aumenta a bagagem do navio de maneira gradual. Ele começa a afundar, mas ninguém percebe. O processo está mascarado pelo subir e descer das ondas.
(2) Os passageiros inicialmente sem bagagem que atingem a média de 184 kg param de prestar serviço e passam a consumir. No próximo porto eles convidam mais passageiros sem bagagem. Quando o nível de afundamento do navio fica mais evidente, as pessoas logo culpam os novos passageiros, sem pensar nas bagagens. A verdade é que apenas o peso adicionado à bagagem dos 68 passageiros que começaram praticamente sem bagagem somou 12.521 kg. Isso é mais do que o navio poderia suportar, mesmo que não existissem o exagerado e os medianos (e independente dos sem bagagem que entraram depois).
(3) Diante disso, uns começam a defender que não se admitirá mais ninguém no navio e que, se possível, alguns deveriam sair. Outros se esforçam para desenvolver uma tecnologia que aumente a capacidade de carga do navio. Um dia, quando o navio afunda de vez, apenas os mais ricos e influentes compram lugares nos botes salva-vidas e escapam do destino funesto.

Esta imagem em 3 etapas é para mostrar que o caminho para uma sociedade igualitária não passa apenas pela proposta de nivelar todos pelo que, hoje em dia, achamos que é o mediano. Vamos precisar sua pertinência com alguns dados: Sobre a parte (1) Somos 7 bilhões de pessoas que emitem 46 bilhões de toneladas métricas de gás carbônico por ano (dados de 2010 do World Resources Institute). Se a divisão fosse igualitária cada pessoa seria responsável por 4 toneladas anuais. Na verdade, uma pessoa afluente (classe média) emite 11 toneladas ao ano. Um americano emite (gráfico) 20 toneladas e um chinês 3. O IPCC (Painel Intergovernamental Sobre a Mudança Climática) estima que se tudo continuar como está agora a temperatura do planeta aumentará 2° até 2030 (gráfico). As consequências catastróficas projetadas são conhecidas e anunciadas: derretimento de geleiras, inundação de costas e ilhas, pausa das correntes marítimas e, etc... Uma mudança deste destino que seja alcançável defende que 2 toneladas ao ano por pessoa é uma quantia sustentável. Ou seja, a média global tem que cair pela metade e a média afluente tem que cair 80%. O mediano está longe do ideal.

O que a ilustração do navio baseada nos dados mostra é que, mesmo se enquanto sociedade nós atingíssemos um nivelamento embasado no que consideramos o mediano, o planeta não suportaria. Curto e grosso, nosso estilo de vida afluente, em um mundo de recursos escassos, depende da miséria dos pobres. Desse modo, um quadro (um tanto utópico) como (2) no qual o crescimento econômico dos países subdesenvolvidos vai acabar com a pobreza do mundo não é desejável (numa análise malthusiana). Seria preciso (3) ou reduzir o que é o médio ou inventar uma tecnologia que faça o navio suportar mais peso. 

Na verdade (2) é uma possibilidade utópica porque, apesar da eficácia comprovada de intervenções humanitárias em situações de extrema pobreza, o mundo tem se desenvolvido intensificando a polarização na qual os mais ricos ficam ainda mais ricos e os mais pobres tornam-se mais numerosos. De 1988 a 2008 a renda dos 5% mais ricos da população aumentou e a dos 20% mais pobres diminuiu (pdf). Além disso, também a alegada redução do número de pessoas em pobreza absoluta parece ser, no mínimo, questionável, já que se deve um pouco a manipulação de dados e critérios.
É verdade que o desenvolvimento está se alastrando e reduz a pobreza. Nos anos 1950 mais da metade da população vivia em pobreza extrema (com menos de 1,25$ por dia), hoje o número caiu pela metade. O fator mais responsável pela redução da pobreza no mundo recente foi o crescimento da China, responsável por ¾ da redução. Há duas décadas 84% dos chineses estavam abaixo da linha da pobreza, hoje são apenas 10%. O lado negativo dessa melhora é que, quando alguém sai da pobreza, junto com os benefícios que eles recebem, aumentam também as externalidades geradas por este novo estilo de vida. A China, por exemplo, se tornou nesse período a terceira região (mas a última informação disponível é de 1994!) que mais emite gás carbônico no planeta, atrás dos EUA e UE. Além disso, a uma taxa de crescimento de 2%, ainda alta, mas diferente da China, os países pobres precisariam de 35 anos para dobrar a renda dos que vivem em pobreza extrema. Não só é muito tempo como ainda, nesse intervalo, os medianos também dobrariam sua renda e consumo (já 30 vezes maior). Portanto, mesmo que o desenvolvimento econômico se alastre por todo o mundo, as consequências parecem mais próximas de distopia do que de utopia.

Quem vê na imagem do navio um quadro malthusiano (e não está de todo enganado) tende a agir como os primeiros passageiros em (3), culpando os que entraram depois pela insustentabilidade da situação sem olhar para a mochila que carregam nas costas. É assim que surge a crítica à superpopulação que reverbera no tema da ajuda internacional. Em um mundo superpovoado com 7 bilhões de pessoas no qual os pobres são responsáveis por maior parte desse crescimento, muitos defendem que ajudá-los só seria justificável se fosse no sentido de planejamento familiar. Porém, quem pensa assim ignora que, na verdade, o responsável pela insustentabilidade do modo de vida dos humanos não é o aumento no número de pessoas, mas o aumento do consumo de recursos naturais por uma pequena parte da população. Em termos mais pessoais, é o filho único de um casal afluente (classe média) que vai consumir 11 toneladas de gás carbônico ao ano e não os 6 filhos de pais em pobreza extrema que consomem menos de uma tonelada. Compare (gráfico 2) as 21.6 toneladas do luxemburguês com a 1.1 do indiano. Nesta perspectiva, para combater o aquecimento global, em vez de distribuir preservativos aos outros pense em parar de comer carne, andar de avião, carro e, etc. Enfim, a imagem é malthusiana no sentido de prever um futuro insustentável, mas se diferencia ao atribuir mais responsabilidade ao estilo de vida médio do que à quantidade de pessoas.

Esta distinção de responsabilidade, no entanto, não altera em nada o principal contra-argumento a qualquer posição malthusiana. Este tipo de crítica ignoraria a evolução tecnológica que permite evitar as situações insustentáveis que aparece em (3) na corrida tecnológica por aumentar a capacidade de carga do navio. O cálculo original de Malthus (wikip) era que se a população continuasse crescendo na razão que crescia a certa altura não haveria comida suficiente para todos. Hoje em dia, no entanto, a população cresce ainda mais rápido e há (em quantidade) comida para todos. Isto acontece graças à chamada 'revolução verde' que, com uso da ciência, aumentou em muito a capacidade de produção de alimento por m² no planeta. Mesmo não tendo se concretizado, o cálculo de Malthus ou do aquecimento global continua correto porque ele mostrava o que aconteceria se as coisas continuassem como estavam. Por outro lado, o caso contingente de que se desenvolveu uma tecnologia para o problema do alimento em nada garante que se desenvolverá uma solução para o aquecimento global. E mais, a solução contingente provavelmente só aconteceu porque a previsão pessimista foi aceita como real.

Uma análise retroativa desse caso histórico revela algo ainda mais importante. Graças à revolução verde temos comida suficiente para todos (sem entrar na questão dos efeitos colaterais à saúde e ao solo de algumas destas intervenções). Mesmo assim, uma grande parte da população ainda passa fome. Isto é uma prova de que a tecnologia pode até fornecer os meios, mas sozinha não vai resolver o problema. Resolver a ameaça do aquecimento global com uma solução tecnológica ainda nos soa como ficção científica, mas isso não é argumento contra sua probabilidade. A colonização de outro planeta, por exemplo, por certo implicará na seleção de alguns indivíduos de poucas espécies que sobreviverão como os passageiros ricos que ocuparam os botes escassos em (3). Desse modo, ainda que continue sendo justificável a busca por soluções tecnológicas, parece que a maneira mais ética (ou igualitária) de atacar o problema passa por uma redução no consumo e melhor distribuição de uso de recursos naturais que o desenvolvimento e crescimento econômico exigem.  

Sobre solucionar problemas causados por nós mesmos



As nossas maneiras mais comuns de solucionar problemas, principalmente os causados por nós mesmos, podem ser colocadas em um espectro que varia entre dois opostos. Em um lado, temos a solução por abstinência, de outro, a solução por imersão. O que a nomenclatura escolhida tenta deixar evidente é que, ou bem solucionamos um problema deixando de fazer o que o causa, ou bem entramos a fundo na sua causa a fim de encontrar uma solução ali de dentro. Na maioria das vezes, lidamos com os problemas em posições intermediárias do espectro, mas sempre, conscientemente, tendendo para um ou para outro lado.

Um exemplo corriqueiro pode ser pensado a partir dos relacionamentos humanos. Às vezes, diante de um relacionamento que deixou de funcionar, o abandonamos, outras vezes, tentamos torná-lo mais sério. De um lado, dois namorados entediados podem se separar e um cônjuge de um casamento naufragado, após o divórcio, pode decidir morar em uma cidade diferente. Do outro lado, dois namorados entediados podem decidir se casar tanto quanto um casamento que afunda pode tentar ser resgatado pela opção de ter filhos.

Não há uma resposta única para o modo de agir preferível. É fácil pensar em exemplos de relacionamentos resgatados por um compromisso mais sério ou por crianças, bem como em vidas que prosperaram após o abandono de parceiros. Esse parece ser mais um caso de 'cada caso é um caso'. Mais interessante ainda é pensar que não só cada caso é um caso, mas cada um é de um jeito. Nessa concepção, um certo tipo de personalidade tenderia a solucionar as coisas por abstinência enquanto outros prefeririam optar pela imersão. Se for assim, identificar uma tendência em si pode ser uma estratégia importante, não só para aproveitar suas forças, mas também para evitar ser feito refém delas.

Uma pessoa que sempre abandona um relacionamento pode vir a perceber que, dependendo do caso, convém tentar fazer uma força para dar certo. Ao passo que aqueles que tentam insistir sempre devem aprender a reconhecer quando abandonar o barco. Bom, acho que é hora de abandonar o exemplo comezinho do relacionamento. Mais importante para a ética é pensar em casos que envolvem uma comunidade mais numerosa de pessoas. O que vem em mente, nestes tempos, é o aquecimento global. E, nesse âmbito, o exemplo primeiro é sempre dos veículos que usam energia gerada por combustíveis fósseis.

Diante de um problema identificado temos, então, a opção de agir em qualquer uma das direções. Durante muito tempo, por uma razão de economia, se adicionava chumbo líquido à gasolina. Porém, quando ficou provado que o chumbo, em qualquer quantidade, faz muito mal aos humanos (e após muita luta contra a indústria automobilística), abandonou-se o uso deste metal na gasolina. Eis uma solução por abandono moderado. Porém, após um tempo, concluiu-se que a queima da gasolina é nociva para a atmosfera terrestre e que os combustíveis fósseis não durariam eternamente. Uma solução imersiva foi o desenvolvimento de biocombustíveis, como etanol, para ser misturado à gasolina. Como o etanol tem origem vegetal (a cana-de-açúcar, entre outros) o problema da renovabilidade foi resolvido. No entanto, o problema ambiental talvez tenha sido ampliado. A demanda por grandes quantidades de um só vegetal incentiva a monocultura, desmatamento de florestas e corrosão do solo. No fim, temos o sucesso fracassado do abandono moderado e o sucesso fracassado da imersão moderada.

Em situações como essa, os dois tipos de personalidades encontram evidência para corroborar sua opção e criticar a oposição. Os abstinentes veem no sucesso do abandono a prova de que a esperança está na abstinência extrema, sem reconhecer as limitações desta opção apontada pelos imersivos. Para estes um mundo sem mobilidade tem mais a perder do que um mundo sem gasolina. Os imersivos veem no sucesso da imersão uma prova de que, com mais pesquisa, novas soluções aparecerão. A isso os abstinentes retrucam dizendo que a tal solução só vai gerar um problema ainda maior. Não acredito que haja uma resposta definitiva, mas, o que nenhum dos lados tende a admitir de primeira, parece ser o mais provável. O abandono total só vai acontecer se houver uma opção alternativa de eficiência comparável.

O terceiro exemplo chega mais próximo ao assunto do blog. O altruísmo eficaz, que incentiva a doação de parte da nossa renda para acabar com a pobreza, advoga, principalmente, dois estilos de vida opostos. Um deles é o 'ganhar para doar' (earning to give), no qual se incentiva os altruístas a seguirem carreiras altamente lucrativas (como tecnologia, advocacia ou o mercado financeiro) para terem muito o que doar. A crítica de índole abstinente a esta opção é que, muitas vezes, estes empregos parecem estar diretamente relacionados com a criação de desigualdade no planeta. Porém, a contrarresposta também é pertinente. O fato de que um altruísta eficaz vai ocupar aquele cargo retira um inescrupuloso de uma posição importante e pode contribuir para a mudança na ordem mundial.

A outra opção de estilo de vida é o 'poupar para doar' (not-spending to give). Nesse caso, a opção é por um estilo de vista bem simples que permita, mesmo com um salário moderado, que uma quantia relevante seja doada. A oposição imersiva a esta opção é que a quantia doada será muito menor. Um poupador que doa 90% do seu ganho, normalmente, vai doar menos, em absoluto, que um ganhador que doe 20% do seu salário. Em vista dos benefícios que a ajuda humanitária causa, esta diferença não pode ser ignorada. A resposta imersiva a isto é que os trabalhos mal remunerados, normalmente, são estratégicos para a formação de opinião pública (professores, pesquisadores e etc.). Assim, ao convencerem um grande número de pessoas a aceitarem o altruísmo eficaz, eles podem aumentar o impacto da sua atuação.

Soluções para vários problemas podem ser pensados nesse paradigma. Por exemplo, solucionar o problema das mortes no trânsito inventando carros que se auto-dirigem ou com políticas que incentivem os humanos a abandonarem comportamentos arriscados. Resolver o aquecimento global com soluções engenhosas como uma camada de ozônio artificialmente criada ou com abandono de comportamentos que geram externalidades muito altas como viagens aéreas ou uma dieta carnívora. Curar a malária inventando uma vacina ou usando redes para impedir o contato com o mosquito. A dificuldade é que se pensarmos em um mundo de recursos escassos as duas estratégias competem. Por exemplo, o dinheiro gasto na pesquisa  de uma vacina poderia ser usado na compra de redes. A pesquisa é uma aposta que pode não dar em nada ou pode gerar uma solução definitiva. As redes, opção conservadora, tem resultado positivo e imediato, fácil de mensurar, mas limitado. A tendência, se pensarmos na humanidade como um todo, é escolher um pouco dos dois e, talvez, sem termos consciência disso (já que no nível do indivíduo cada um tem uma preferência), esta não-radicalidade provocada pela união de ideais radicalmente opostas, seja a melhor alternativa mesmo.

Não tenho resposta para escolher um ou outro, mas não acho que seja um caso de suspender o julgamento com a premissa de que um não faz mais bem ou mal do que o outro. Se popularidade for um bom indício, o ganhar para doar é o responsável pela maior atenção da mídia ao altruísmo eficaz. Por enquanto, eu sigo no poupar para doar, mas admito que é muito mais porque se adequa ao meu tipo de personalidade do que quaisquer outras, das muitas, explicações racionalizantes que eu possa usar para me justificar. Entre estas, as mais convincentes, atualmente, são a ecológica e ideológica. Tento deixar a menor marca de carbono possível na terra e também evito participar de relações mercantis que contribuem para exploração de seres humanos e animais. Por exemplo, reduzi todos meus eletroeletrônicos para um laptop. Mas isso só é possível porque o laptop me serve de TV, som, leitor e editor de textos, telefone... O ponto é que muitos tiveram que aprofundar no problema para possibilitar minha simplificação. Minha dúvida, então, é se este é um daqueles casos em que a gente deve aproveitar as nossas forças ou deixar de ser refém delas.


*Agradeço ao José Oliveira, que (como sempre) fez comentários que me ajudam muito a melhorar o texto.

Faz sentido ser especista e vegano?


Introdução
Hoje em dia a maioria das pessoas concorda que não é correto infligir dor desnecessária em um animal. Por exemplo, esportes que requerem um tratamento cruel de animais como as touradas e as rinhas de cães ou galos são condenados pela opinião pública. Reconhecemos, portanto, (sem precisar sermos utilitaristas) a dor como um critério primordial para guiar nossa conduta face a outros animais. Por outro lado, normalmente também é aceito que os outros animais sejam maltratados para alimentar os humanos. As duas situações são similares: maltratar uns para beneficiar outros. Ademais, a produção industrial de carne gera muito mais sofrimento que os esportes citados acima. Um caso é aceito, o outro não, mas por quê?

Argumento da necessidade
A justificativa mais normal procura diferenciar o tipo de benefício extraído da crueldade com os outros animais. Tendemos a achar que comer carne animal é necessário enquanto que nos entretermos com esportes não é. Porém esta explicação não parece se justificar. Estudos nutricionais comprovam que é possível que uma dieta vegana supra todas as necessidades dos seres humanos. A única vitamina necessária, a famosa B12, pode ser adquirida por suplemento ou por uma dieta vegetariana. Vários atletas de alto nível, por exemplo, não comem carnes ou derivados. De modo que, assim como podemos achar outros esportes que não prejudicam outros seres sencientes também podemos achar outra dieta tão (ou mais saudável) que a carnívora. Mas este tipo de evidência não basta para mudar o nosso comportamento.

O argumento da evolução
Ainda que a necessidade atual não seja um critério válido para uma dieta carnívora, recorremos a outras justificativas. Uma bem popular se embasa na hipótese de que foi o fato de comer carne que fez com que os seres humanos evoluíssem seus cérebros. Porém, pesquisas antropológicas mostram que o desenvolvimento do cérebro veio bem antes de uma dieta carnívora. Além disso, usar a evolução da espécie como justificativa de causar sofrimento alheio não parece convincente. Ninguém aceitaria sacrifica a nossa própria espécie para benefício futuro, por exemplo, escravizando uma geração de crianças para fazer testes genéticos de modo a criar uma geração mais evoluída de seres humanos. Sem mencionar que nós humanos 'evoluídos' já fracassamos em utilizar o habitat que compartilhamos com os outros de maneira sustentável, o que leva a hipóteses de que grandes inteligências tendem a se extinguir pois fazem mal ao ambiente.

Opções de dieta
Diante da não necessidade de comer carne deveríamos abrir mão deste tipo de dieta. Neste ponto existem várias opções de acordo com diferentes motivações éticas. Duas oposições extremas são o veganismo e o ominivorismo consciente. O vegano se abstém de utilizar qualquer produto que explora algum tipo de vida animal por considerar antiético. Um problema desta posição é ignorar que a produção vegetal e animal, em fazendas tradicionais, estão mais ligadas do que imaginamos de modo que o cultivo de vegetais implica algum uso de animais. O ominívoro consciente, por sua vez, não se importa com a morte dos animais. Seu problema é com o tipo de vida que este animal teve até morrer. Ele é contra a produção industrial de carne porque esta não permite aos animais que eles tenham uma existência plena durante a vida. Por outro lado, se estes animais são criados com espaço, direitos e tratamento que leva em consideração suas necessidades, eles não veem problema em abatê-los para virar alimento. Mesmo dentro desta perspectiva, pode-se argumentar que esta é uma posição elitista já que não há espaço para produzir carne desta maneira a fim de alimentar toda a humanidade. De maneira análoga o vegano também deve aceitar as conquistas da revolução verde, já que sem o uso de fertilizantes e pesticidas parece difícil que se produza alimentos, mesmo de origem vegetal, para toda a população mundial. Mas, mesmo após alterar a dieta face à não necessidade de uso dos animais para nossa satisfação, restam questões relevantes nas maneiras em que vamos interagir com os animais não humanos.

Especismo
Uma vez que não há um critério real para explicar a preferência de uma espécie em detrimento da outra, fica caracterizado um tipo de preconceito. Este é denominado especismo e consiste em conceder um tratamento privilegiado aos membros de uma espécie apenas por pertencerem a essa espécie. O ser humano tende a ser assim. Quando a gente prefere salvar uma criança em vez de um filhote de outro animal, provavelmente, estamos sendo especistas. Este tipo de comportamento parece introjetado na nossa natureza. Isso não quer dizer que ele não possa ser alterado, mas apenas que a resposta é tão automática que é difícil de ser questionada. Se questionada, no entanto, a resposta que normalmente emerge é de que a vida humana, por ser mais complexa, merece ser mais valorizada. Este tipo de resposta se adéqua à nossa intuição de que é melhor salvar uma criança no lugar de cem insetos, cinquenta peixes, dez frangos ou cinco cachorros. Mas existe algo que pudesse definir esta suposta maior complexidade da vida?

Inteligência
Mais uma vez o principal critério parece estar ligado à razão ou inteligência. Uma vez que a relação do ser humanos com as experiências passadas e projeção do futuro nos parecem ser mais fortes do que outros animais mais imediatistas, acabamos valorizando mais uma vida humana do que outros tipos de animais. Quem aceita este tipo de justificativa, portanto (se quiser ser coerente) tem que usar a inteligência como critério de preferência. Apesar dos exemplos acima, este não parece ser sempre o caso. Imagine que você está no campo e vê um lobo correndo na direção de um filhote de gato e um filhote de porco. Se você pode salvar apenas um, qual seria? Sendo criado numa cultura ocidental as chances são grandes de que você simpatize mais com o gato. Apesar disso, parece seguro afirmar que porcos são mais inteligentes (têm uma subjetividade mais complexa) que os felinos. A explicação na preferência pelos felinos é emocional. Como os gatos parecem mais bonitinhos a olhos humanos, acabamos os privilegiando. Logo, se quisermos adotar um especismo coerente seria preciso escolher entre o critério da inteligência ou o da aparência. Ou a gente passa a privilegiar os que têm uma existência mais complexa ou os que nos parecem mais bonitinhos.

Aparência
A justificativa máxima para o especismo é explicar nossa preferência por seres da nossa espécie. Posto que existem vários filhotes de outros animais que nos parecem mais bonitos do que alguns bebês humanos, e, mesmo assim, a tendência segue sendo preferirmos salvar qualquer bebê humano no lugar de um filhote de outro animal, a aparência falha em fornecer um critério coerente de ação. Voltamos, então, ao uso da inteligência como um critério de privilégio. Porém, aqui é preciso fazer uma ressalva. Inteligência (provavelmente um termo equivocado) não deve ser entendido no sentido de potência de raciocínio, já que não parece defensável que uma pessoa mais inteligente nesse sentido (medido pelo QI, memória, erudição e, etc...) deva ter privilégio de tratamento (estes traços, na verdade, já facilitam muito sua vida). Assim como os humanos mais bonitos (que também podem ter vantagem por isso) não merecem privilégio algum de consideração moral. A inteligência usada como critério aqui, então, teria o sentido de riqueza nas experiências subjetivas. Como a mente humana parece sim ser mais refinada no trato com experiências passadas e antecipações do futuro, bem como no relacionamento com outras mentes, o sofrimento provocado nela seria maior. Voltamos assim à questão da dor. A inteligência só serve de critério porque ela possibilita uma experiência mais dolorosa do sofrimento e da morte. Esta parece ser a melhor justificativa para o especismo.

Graus de sofrimento
Este pensamento permite alguma hierarquização no sofrimento infligido aos outros animais. Por exemplo, uma vez que mamíferos teriam uma experiência subjetiva mais complexa que os crustáceos, seria menos ruim comer estes últimos. Porém, este tipo de análise que isola um critério esquece que a pesca predatória de peixes e crustáceos tem um impacto ambiental altíssimo que vai além do sofrimento provocado em suas vítimas. O mesmo é verdade para os animais terrestres. A produção de calorias em forma de 1 kg de carne bovina demanda 7 kg de grãos. Para cada quilo de carne de porco seriam necessários 4 kg de grãos. Em vista disso, mais sustentável é abandonar a carne e ir direto aos grãos. Ainda segundo o princípio isolado do sofrimento, seria melhor evitar todo tipo de carne de rebanho e evitar ovos, já que sua produção industrial provoca muito sofrimento. Um quilo de ovos requer 70 dias de confinamento. Por outro lado, consumir laticínios seria a maneira menos ruim de adquirir B12 de maneira natural pois apenas 2 horas de confinamento são necessárias para produzir um quilo de leite.

Intervencionismo
Levado ao extremo esta postura de evitar sofrimento acaba nos colocando diante da possibilidade de intervir na natureza para reduzir o sofrimento dos animais selvagens. De fato, parece que a maioria das vidas selvagens tem mais sofrimento do que prazer. Os sinais de estresse, ferimento e expectativa de vida de animais selvagens colocam em questão se este tipo de vida vale a pena. Alguns defendem que a vida selvagem repleta de sofrimento e desafios realiza os indivíduos que nela existem, mas este tipo de defesa soa simplesmente retórica. O melhor argumento contra intervir na natureza é conservador. Na verdade, como na maioria dos casos as intervenções humanas na natureza com intuito de melhorar acabam sendo desastrosas por não preverem muitas das consequências, parece ser melhor deixar a coisa funcionar como agora e concentrar o esforço em não prejudicar (em vez de tentar melhorar).

Em benefício próprio
A situação hipotética de termos que escolher salvar vinte cachorros em vez de um humano provavelmente não acontecerá com nenhum de nós. Porém, vários casos similares acontecem no contexto em que existimos. Um caso é o dos experimentos científicos. Por exemplo, para saber se um shampoo fazia mal aos olhos humanos fazia-se, até bem há pouco tempo, testes em coelhos. Ainda hoje, pesquisas com ratos são o primeiro passo para o teste de várias vacinas. Mais uma vez, o primeiro caso não é mais aceito, o segundo, sim. De novo, a explicação parece ser a necessidade. O benefício de um produto de beleza é visto como fútil e não justificaria o sofrimento dos animais. Por outro lado, a criação de uma vacina traria um benefício imenso e necessário para os seres humanos (e também para outras espécies, caso se adote um programa de vacinação animal), o que parece justificar o sofrimento de infligido aos animais não humanos.

Em benefício dos outros
O caso da alimentação de humanos em extrema pobreza também se apresenta aqui. Muitas ONGs sugerem que compremos vacas, porcos ou outros animais que servirão de fonte de alimentação para pequenos fazendeiros cujas pequenas terras e rebanhos tornaram-se improdutivos devido ao aquecimento global. É uma escolha especista salvar uns, os humanos pobres, com a vida dos outros, os animais de rebanho. Além disso há sempre a escolha de doar nossos recursos que são escassos. Podemos aplicá-lo em organizações que lutam pelo direito dos animais ou em organizações que combatem a pobreza extrema (o conflito ainda aumenta na medida em que o aumento de rendimento implica um aumento de consumo de carne, como o caso da China, Índia e Brasil comprovam). Quem ainda aceita a complexidade subjetiva como um critério, deve optar por doar 100% do dinheiro dedicado ao altruísmo para salvar vidas humanas. De qualquer maneira, nos casos que não envolvem escolhas, não há dúvidas. A adoção de uma dieta vegana é um exemplo disso. Outra possibilidade é doar tempo na promoção dos direitos dos animais tentando convencer os outros a adotarem uma dieta sem carne.

Bichos de estimação
Outro problema que aparece é o caso dos bichos de estimação. A escolha por ter cachorros e gatos domésticos, por exemplo, parece ser especista, já que estes animais são predadores urbanos que geram muitas mortes. Um gato provoca uma morte a cada 17 horas fora de casa. Por outro lado, não se deve ignorar o benefício gerado aos animais de estimação. Com certeza eles são bem tratados como nunca e, nos casos em que não são criados presos, levam vidas plenas. Isso justifica, principalmente, o caso de se adotar um animal abandonado como bicho de estimação. Ainda assim, existem efeitos colaterais. Ter um cachorro parece gerar mais poluição que adquirir um carro grande como um SUV. O ideal talvez seja evitar os dois. Este efeito de poluição é ampliado no caso dos animais de rebanho, já que estes mamíferos, através de seus gases, são grandes produtores de metano.

Conclusão
As questões são complexas, minha apresentação é introdutória, e pede aprofundamento. De qualquer maneira, respostas fáceis não virão. O mais importante, no entanto, é não usar esta dificuldade de posicionamento como uma justificativa para a inação. Não é uma questão de tudo ou nada. Só porque você não vai acabar com todo sofrimento animal, não quer dizer que você não deve fazer nada para melhorar a situação em que o mundo se encontra. Por isso para de ir a touradas, procurar comprar carne de animais tratados com alguma dignidade, virar vegetariano, vegano, resgatar um cachorro na rua e, etc são todas atitudes válidas que devem ser feitas por quem quiser e valorizadas mesmo por quem não as faz. Em termos práticos um dia sem carne já reduz algum sofrimento e poluição. Estes casos são exemplos de situações em que tentar já é conseguir.

O dia em que eu (não) deixei de ser humano para ser um altruísta eficaz









Introdução:
O altruísmo eficaz, num certo sentido, tem uma pretensão de ser sobre-humano. Isto porque advoga a necessidade de superação dos chamados 'vieses cognitivos', que são maneiras pelas quais nós, humanos, erramos sistematicamente. O exemplo mais direto é o da distância psicológica que mostra como a gente tende a sentir mais compaixão pelo que está mais perto, mesmo sem ter razão para isso. Desse modo, normalmente, preferimos ajudar uma pessoa que está em perigo ao nosso lado em vez de ajudar uma dezena de pessoas longe de nós. Segundo o AE este é um viés a ser superado já que é preferível salvar dez pessoas no lugar de uma. Por esse tipo de princípio tal posição pode ser acusada de 'calculista' já que ignora o sentimento causado pela proximidade em vista do número de vítimas a ser salvo.

A teoria colocada em prática:
Por ser calculista, o AE sugere que doemos a parte de nossa renda para onde nosso dinheiro escasso causará o maior impacto positivo no maior número de pessoas possível. Numa aplicação prática isso requer que eu não dê 2 reais para um pedinte na rua se posso dá-los ao programa de controle da esquistossomose que precisa dessa quantia para facilitar entrega de tratamento na África. Apesar do pedinte na esquina me comover mais, em geral, o que eu faço é reservar uma quantia do meu ordenado para doar para causas eficazes.

Negligenciar o sofrimento que se apresenta diante de nós é uma tarefa árdua. Mas é importante notar que, no fim das contas, a preferência por gerar o máximo de bem com o mesmo recurso é que é mais humanista. Apesar disso, não é preciso desconsiderar a crítica por completo. Mesmo diante da superação de um viés cognitivo é sempre bom observar também sua função operante no dia a dia. Se não construíssemos alguma distância psicológica em relação ao 1.2 bilhão de pessoas que vive atualmente em extrema pobreza (com menos de 1.25 dólar por dia) atualmente, seria muito provável que a angustia causada por tamanho sofrimento nos impedisse de viver. Neste sentido, seguir com a vida mas doar uma parte da nossa renda para combater a pobreza é uma forma de superar a distância psicológica sem deixar que essa superação se transforme num impedimento. Por outro lado, convém tomar cuidado para que a superação da distância psicológica não leve a uma posição na qual deixemos de sentir comoção diante do sofrimento alheio.

A prática interferindo na teoria:
Por exemplo, quarta passada (14/04/2014), uma figura esquálida subiu no ônibus em que eu ia para a universidade. Ele fez um discurso emocionado. Contou que tinha AIDS, adquirida da mulher, e que eles tinham um filho com uma doença rara (esqueci o nome). O homem disse ainda que precisava conseguir 200 reais para comprar o remédio que salvaria a vida da criança (por uns dias). Enquanto ele falava eu pensava. Não faz sentido nenhum dar dinheiro pra ele. Mesmo se a história for verdadeira, o remédio caro vai apenas retardar o desfecho trágico inevitável. É muito melhor usar este dinheiro com uma causa mais eficaz. Só que, vivendo a situação, eu não gostei de pensar assim. E mais, foi só porque eu pensei assim e não gostei de fazê-lo que acabei dando algum dinheiro para o pedinte.

É claro que não abandonei meus princípios. Antes de dar o dinheiro eu me comprometi a não deduzir a quantia da minha doação mensal. Assim, eu pensei, não retiraria dinheiro de uma causa eficaz para contribuir com uma ineficaz. É claro que não foi preciso pensar muito mais pra concluir que, na verdade, eu deveria era ter aumentado a quantia que doo por mês com o que dei para o pedinte. Para solucionar o dilema, resolvi acrescentar a mesma quantia que doei a ele à minha doação desse mês. É claro que nesse ponto a tendência é cair numa repetição ao infinito de sempre aumentar a quantia a ser doada. Porém, recorri a distância psicológica e freei o impulso (correto mas ainda sobre-humano demais para mim) de aumento indefinido.

Reavaliação:
O homem desceu do ônibus, mas eu segui pensando na situação. Pensei que talvez pudesse ser mentira a história dele, apenas uma ficção criada para tirar dinheiro das pessoas. Diante disso, o primeiro impulso é se indignar. Mas, depois de considerar a questão mais um pouco, acabei defendendo o contrário. É, às vezes é melhor terminar em reavaliação do que em conclusão.

Eu espero mesmo que seja mentira e que ele tenha nos enganado. Isto porque dar dinheiro pra alguém saudável que vai usar o recurso pra melhorar sua vida é melhor do que suportar uma causa perdida apenas por piedade. E mais, a mentira dele (se for mentira, é claro) conta muito sobre a nossa postura diante da necessidade dos outros. Se ele subisse no ônibus e dissesse que o seu filho tinha esquistossomose e precisava de dinheiro pra tratá-lo pouca gente ia se comover. Isso porque essa doença tropical negligenciada não é vista por nós como uma ameaça real já que vivemos uma realidade tão diferente da maioria da população mundial em extrema pobreza. É preciso, portanto, romper a distância psicológica para saber que as doenças tropicais negligenciadas causam mais dano que a Aids. Então, ciente de que do nosso ponto de vista comovente é a Aids (doença ainda sem cura!), o que o homem fez ao inventar aquela história foi adequar o seu drama real a um vocabulário que nós entendemos. Desse modo ele realizou, apelando para os sentimentos, o que o AE quer fazer através da razão: quebrar a distância psicológica para levar a ação. Parabéns a ele, um altruísta eficaz inato.

Quem não teve a sorte de encontrar com um pedinte hoje pode ir ao site do SCI e fazer uma doação.