Dois
casos
Uma
manhã ensolarada de domingo. Nenhuma dúvida paira no céu. Um dia
perfeito para encontrar amigos e celebrar a vida. É exatamente isto
que você vai fazer, à sua maneira, num protesto contra o aborto.
Você encontra com o seu grupo em frente a uma clínica médica. Cada
cliente ou empregado que passa pela porta faz vocês gritarem seus
slogans mais alto. Eles não parecem se incomodar muito. De repente
um amontoado de pessoas começa a sair correndo do prédio. Eles
gritam. Após um momento de medo você entende a situação. Nas suas
caras não há raiva, apenas medo. A clínica está pegando fogo! Uma
mulher vem em sua direção gritando que o seu bebê ficou lá
dentro. Você corre para a clínica enquanto o fogo se espalha. Um
grito contínuo vem de um quarto. Um chute para abrir a porta e você
vê, de um lado, um bebê chorando, de outro alguns tubos cuja
etiqueta indica se tratarem de embriões. Sem hesitar você pega a
criança e deixa os embriões. Quando você sai do prédio em chamas
a mãe do bebê se aproxima numa atitude subserviente de gratidão.
Você não consegue evitar o clichê para mitigar o desconforto de
ser tratado como um herói. Eu só fiz o que qualquer um faria.
Uma
noite de sábado amena. O céu está cheio de estrelas. É uma noite
perfeita para encontrar os amigos e celebrar a vida. É por isso que
você, apesar de se sentir um pouco enjoada, decide sair de casa. A
noitada é longa. Você fala, ri, bebe e fuma bastante, tanto em
qualidade quanto em quantidade. Quando você finalmente está
voltando para casa aquela pequena náusea reaparece de maneira
poderosa. O hospital se apresenta como um destino inevitável. Há um
branco na sua memória. Na manhã seguinte, após identificar os
lençóis brancos entre paredes brancas você se lembra de ter ido a
um hospital, nada além disso. Um médico aparece para te dar algumas
informações. Ele escolhe as palavras com cuidado para informar que
você sofreu um aborto na noite passada. Você diz que não sabia da
gravidez. Sem fazer concessões por educação, ele coloca a
responsabilidade do problema no seu comportamento excessivo. Você se
sente culpada. Para mitigar o desconforto de ser uma vilã você
repete um clichê para si mesma. Se eu soubesse eu cuidaria do bebê.
Introdução
Se
as estórias
acima soam literárias em demasia,
é por uma tentativa de evocar empatia humana em
situações hipotéticas. Ao mesmo tempo o abuso do pronome da
segunda pessoa do singular tenta misturar leitor e personagem para
provocar algum questionamento acerca das suas intuições. Ainda
assim, elas podem ser consideradas filosóficas na medida em que o
seu cerne está nos clichês e na contradição que deles surge. A
estrutura espelhada de apresentação é um convite para comparar as
situações. Na primeira situação, normalmente, não há dúvidas
sobre salvar o bebê ao invés dos embriões enquanto que, na
segunda, a tendência é culpabilizar quem falha em cuidar de um
embrião.
Concepcionismo
ou não
A
primeira situação apresenta um dilema em
si mesma apenas se, como a personagem, o
leitor acredita que um embrião já merece o direito humano à vida.
Esta posição é chamada concepcionalismo. O caso narrado encena um
de seus problemas na medida que ao salvar o bebê no lugar dos
embriões o concepcionista estaria escolhendo salvar uma vida no
lugar de várias vidas. Traduzida nestes termos a escolha que parecia
intuitivamente correta começa a soar
errada. Como a gente tende a continuar querendo salvar o bebê, a
saída é questionar o concepcionalismo. Mas não é tão fácil de
convencer a si mesmo. Parece necessário, então, estabelecer um
critério razoável de acordo com o qual os direitos humanos não
seriam aplicáveis aos embriões. Depois de alguma pesquisa a maioria
pode encontrar uma solução possível num modelo ético dividido em
dois níveis. Primeiro, para ser sujeito de consideração moral,
seria preciso que alguém seja, ao menos, capaz de sentir dor. Em
segundo lugar, para ter os direitos humanos plenos, seria preciso
ainda ser racional e consciente. O resultado parece funcionar. Bebês
sentem dor, embriões não, portanto seria preferível salvar um bebê
em vez de alguns
embriões.
Anti-concepcionismo
ou não
Agora
deveria ser fácil
defender a legalização do aborto. Porém, após toda a
racionalização prévia a tendência ainda é de se sentir culpado
pelo maltrato do embrião descrito na segunda história. Até um
militante pró-aborto concordaria que o comportamento excessivo que
causa a morte de um filho desejado caracteriza uma falha moral. Mais
alguma pesquisa leva a descoberta que as pessoas já tentaram
explicar esta sensação. Uma das respostas mais convincentes afirma
que embriões são seres humanos em potencial. Como tais, eles
mereceriam possuir os direitos humanos. No entanto, após a conclusão
extraída da primeira história não parece possível simplesmente
voltar e aplicar direitos humanos plenos aos embriões. Esta é uma
das maldições (para quem gosta de metáforas religiosas) ou efeitos
colaterais (para quem prefere metáforas médicas) do conhecimento.
Mesmo se você tenta abortar um pensamento, não há mais volta
possível a um
estágio anterior à sua
consideração. Uma saída é seguir em frente para tentar justificar
as intuições nas duas situações. É possível salvar o bebê, os
embriões e a nossa consciência?
Uma
solução
Talvez
a impossibilidade de abandonar as conclusões prévia possa servir de
guia rumo a uma resposta um pouco mais satisfatória. Os níveis de
consideração moral parecem ser uma maneira elegante de explicar
direitos diferentes para diferentes tipos de existência. Se alguém
é perturbado pela dor, ele deve ter o direito de não senti-la. Se
alguém é autoconsciente a ponto de relembrar experiências passadas
e projetar experiências futuras, estas devem ser consideradas ao se
estabelecer os seus direitos. Se for este o caso, uma vez aceito o
passado e o futuro como bases para consideração moral parece
pertinente levar em conta também a potencialidade já que esta trata
de prováveis realizações futuras. Assim, seria necessário
adicionar mais um nível no modelo de consideração moral. Se alguém
tem uma potencialidade indolor e inconsciente de se tornar um
organismo capaz de sentir dor, ou de sentir dor e ter consciência de
si, do passado e do futuro, este deve receber alguns direitos
relativos àqueles que receberá
no futuro. Desta maneira surge uma justificativa para se defender o
meio termo. Só porque alguém ainda não tem os direitos que vai ter
no futuro não quer dizer que ele não tenha direito algum. Para
verificar esta hipótese convém aplicar o modelo às situações
hipotéticas apresentadas no início bem como ampliar a aplicação a
situações mais realistas.
Conclusão
Se
a potencialidade for considerada o embrião humano teria que ter
garantido alguns direitos a fim de tornar possível seu
desenvolvimento pleno. Portanto, o comportamento excessivo que
provocou o aborto na segunda história seria, tal qual a intuição,
ainda uma falha moral. Por outro lado, os direitos dos embriões não
seriam iguais aos do bebê porquê um embrião ainda não é capaz de
sentir dor. O que está em harmonia com a preferência por salvar um
bebê no lugar de alguns embriões. Até agora tudo bem, mas as
coisas se tornam mais interessantes quando estas conclusões
extraídas de situações hipotéticas são aplicadas a casos mais
realistas. O modelo de consideração moral em três níveis é
discreto o bastante para apoiar, por exemplo, pesquisa científica
com embriões. Mesmo se a pesquisa acontece com o custo de
intervenções sérias nos embriões o processo é justificável na
medida em que tem por objetivo resolver problemas de seres humanos
plenamente autoconscientes cujas necessidades especiais tornam sua
vida difícil e dolorosa. O modelo também pode justificar o aborto
de uma criança indesejada, antes do embrião poder sentir dor, em
face das consequências, físicas, sociais e psicológicas, em que a
gravidez provocara na vida da mãe.
Em
aberto
No
entanto, antes de pensar que tudo está bem estabelecido convém
seguir adiante nas considerações. Um problema surge de uma outra
versão mais elaborada da primeira história. Suponha que ao entrar
na clínica pegando fogo você encontra não só o bebê e os
embriões mas também uma criança. Se tivesse que escolher apenas
um, qual você salvaria? De acordo com o modelo apresentado acima
seria correto salvar a criança, e não o bebê, já que ela é capaz
de sentir dor e apresenta uma autoconsciência bem mais desenvolvida.
Porém não é isso que nossa intuição parece sugerir. A gente
ainda tende a preferir salvar o bebê. Existe até um clichê que
justifica esta preferência. Como a criança tem mais chances de se
salvar por si mesma, deve-se salvar o bebê. É possível aceitar
esta preferência sem abandonar o modelo proposto anteriormente?
Talvez um caminho seja que o desenvolvimento pleno das
potencialidades
de alguém aumentem não só os seus direitos mas também as suas
responsabilidades. Assim, um adulto teria mais direitos e deveres
para lidar do que uma criança e esta teria mais do que o bebê. Mas
agora não é há mais espaço para ir adiante. Esta foi só mais uma
estratégia literária de acabar logo após prometer uma sequência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário