Introdução
Hoje em dia a maioria das
pessoas concorda que não é correto infligir dor desnecessária em
um animal. Por exemplo, esportes que requerem um tratamento cruel de
animais como as touradas e as rinhas de cães ou galos são
condenados pela opinião pública. Reconhecemos, portanto, (sem
precisar sermos utilitaristas) a dor como um critério primordial
para guiar nossa conduta face a outros animais. Por outro lado,
normalmente também é aceito que os outros animais sejam maltratados
para alimentar os humanos. As duas situações são similares:
maltratar uns para beneficiar outros. Ademais, a produção
industrial de carne gera muito mais sofrimento que os esportes
citados acima. Um caso é aceito, o outro não, mas por quê?
Argumento da necessidade
A justificativa mais
normal procura diferenciar o tipo de benefício extraído da
crueldade com os outros animais. Tendemos a achar que comer carne
animal é necessário enquanto que nos entretermos com esportes não é.
Porém esta explicação não parece se justificar. Estudos
nutricionais comprovam que é possível que uma dieta vegana supra
todas as necessidades dos seres humanos. A única vitamina
necessária, a famosa B12, pode ser adquirida por suplemento ou por
uma dieta vegetariana. Vários atletas de alto nível, por exemplo,
não comem carnes ou derivados. De modo que, assim como podemos achar
outros esportes que não prejudicam outros seres sencientes também
podemos achar outra dieta tão (ou mais saudável) que a carnívora.
Mas este tipo de evidência não basta para mudar o nosso
comportamento.
O argumento da evolução
Ainda que a necessidade
atual não seja um critério válido para uma dieta carnívora,
recorremos a outras justificativas. Uma bem popular se embasa na
hipótese de que foi o fato de comer carne que fez com que os seres humanos evoluíssem
seus cérebros. Porém, pesquisas antropológicas mostram que o
desenvolvimento do cérebro veio bem antes de uma dieta carnívora.
Além disso, usar a evolução da espécie como justificativa de
causar sofrimento alheio não parece convincente. Ninguém aceitaria sacrifica a nossa própria espécie para benefício futuro, por exemplo, escravizando uma geração de crianças para fazer testes genéticos de
modo a criar uma geração mais evoluída de seres humanos. Sem
mencionar que nós humanos 'evoluídos' já fracassamos em utilizar o habitat que compartilhamos com os outros de maneira sustentável, o
que leva a hipóteses de que grandes inteligências tendem a se
extinguir pois fazem mal ao ambiente.
Opções de dieta
Diante da não
necessidade de comer carne deveríamos abrir mão deste tipo de
dieta. Neste ponto existem várias opções de acordo com diferentes
motivações éticas. Duas oposições extremas são o veganismo e o
ominivorismo consciente. O vegano se abstém de utilizar qualquer
produto que explora algum tipo de vida animal por considerar
antiético. Um problema desta posição é ignorar que a produção
vegetal e animal, em fazendas tradicionais, estão mais ligadas do que
imaginamos de modo que o cultivo de vegetais implica algum uso de
animais. O ominívoro consciente, por sua vez, não se importa com a
morte dos animais. Seu problema é com o tipo de vida que este animal
teve até morrer. Ele é contra a produção industrial de carne
porque esta não permite aos animais que eles tenham uma existência
plena durante a vida. Por outro lado, se estes animais são criados
com espaço, direitos e tratamento que leva em consideração suas
necessidades, eles não veem problema em abatê-los para virar
alimento. Mesmo dentro desta perspectiva, pode-se argumentar que esta
é uma posição elitista já que não há espaço para produzir
carne desta maneira a fim de alimentar toda a humanidade. De maneira
análoga o vegano também deve aceitar as conquistas da revolução verde, já que sem o uso de fertilizantes e pesticidas parece difícil
que se produza alimentos, mesmo de origem vegetal, para toda a
população mundial. Mas, mesmo após alterar a dieta face à não
necessidade de uso dos animais para nossa satisfação, restam
questões relevantes nas maneiras em que vamos interagir com os
animais não humanos.
Especismo
Uma vez que não há um
critério real para explicar a preferência de uma espécie em
detrimento da outra, fica caracterizado um tipo de preconceito. Este
é denominado especismo e consiste em conceder um tratamento
privilegiado aos membros de uma espécie apenas por pertencerem a
essa espécie. O ser humano tende a ser assim. Quando a gente prefere
salvar uma criança em vez de um filhote de outro animal, provavelmente, estamos
sendo especistas. Este tipo de comportamento parece introjetado na
nossa natureza. Isso não quer dizer que ele não possa ser alterado,
mas apenas que a resposta é tão automática que é difícil de ser
questionada. Se questionada, no entanto, a resposta que normalmente
emerge é de que a vida humana, por ser mais complexa, merece ser
mais valorizada. Este tipo de resposta se adéqua à nossa intuição
de que é melhor salvar uma criança no lugar de cem insetos,
cinquenta peixes, dez frangos ou cinco cachorros. Mas existe algo que
pudesse definir esta suposta maior complexidade da vida?
Inteligência
Mais uma vez o principal
critério parece estar ligado à razão ou inteligência. Uma vez que
a relação do ser humanos com as experiências passadas e projeção
do futuro nos parecem ser mais fortes do que outros animais mais
imediatistas, acabamos valorizando mais uma vida humana do que outros
tipos de animais. Quem aceita este tipo de justificativa, portanto
(se quiser ser coerente) tem que usar a inteligência como critério
de preferência. Apesar dos exemplos acima, este não parece ser
sempre o caso. Imagine que você está no campo e vê um lobo
correndo na direção de um filhote de gato e um filhote de porco. Se
você pode salvar apenas um, qual seria? Sendo criado numa cultura
ocidental as chances são grandes de que você simpatize mais com o
gato. Apesar disso, parece seguro afirmar que porcos são mais
inteligentes (têm uma subjetividade mais complexa) que os felinos. A
explicação na preferência pelos felinos é emocional. Como os
gatos parecem mais bonitinhos a olhos humanos, acabamos os
privilegiando. Logo, se quisermos adotar um especismo coerente seria
preciso escolher entre o critério da inteligência ou o da aparência.
Ou a gente passa a privilegiar os que têm uma existência mais
complexa ou os que nos parecem mais bonitinhos.
Aparência
A justificativa máxima
para o especismo é explicar nossa preferência por seres da nossa
espécie. Posto que existem vários filhotes de outros animais que nos parecem mais
bonitos do que alguns bebês humanos, e, mesmo assim, a tendência
segue sendo preferirmos salvar qualquer bebê humano no lugar
de um filhote de outro animal, a aparência falha em fornecer um critério coerente
de ação. Voltamos, então, ao uso da inteligência como um critério
de privilégio. Porém, aqui é preciso fazer uma ressalva.
Inteligência (provavelmente um termo equivocado) não deve ser
entendido no sentido de potência de raciocínio, já que não parece
defensável que uma pessoa mais inteligente nesse sentido (medido
pelo QI, memória, erudição e, etc...) deva ter privilégio de
tratamento (estes traços, na verdade, já facilitam muito sua vida).
Assim como os humanos mais bonitos (que também podem ter vantagem por
isso) não merecem privilégio algum de consideração moral. A
inteligência usada como critério aqui, então, teria o sentido de
riqueza nas experiências subjetivas. Como a mente humana parece sim
ser mais refinada no trato com experiências passadas e antecipações
do futuro, bem como no relacionamento com outras mentes, o sofrimento
provocado nela seria maior. Voltamos assim à questão da dor. A
inteligência só serve de critério porque ela possibilita uma
experiência mais dolorosa do sofrimento e da morte. Esta parece ser
a melhor justificativa para o especismo.
Graus de sofrimento
Este pensamento permite
alguma hierarquização no sofrimento infligido aos outros animais.
Por exemplo, uma vez que mamíferos teriam uma experiência subjetiva
mais complexa que os crustáceos, seria menos ruim comer estes
últimos. Porém, este tipo de análise que isola um critério
esquece que a pesca predatória de peixes e crustáceos tem um
impacto ambiental altíssimo que vai além do sofrimento provocado em
suas vítimas. O mesmo é verdade para os animais terrestres. A
produção de calorias em forma de 1 kg de carne bovina demanda 7 kg
de grãos. Para cada quilo de carne de porco seriam necessários 4 kg
de grãos. Em vista disso, mais sustentável é abandonar a carne e
ir direto aos grãos. Ainda segundo o princípio isolado do
sofrimento, seria melhor evitar todo tipo de carne de rebanho e evitar
ovos, já que sua produção industrial provoca muito sofrimento. Um quilo de ovos requer 70 dias de confinamento. Por
outro lado, consumir laticínios seria a maneira menos ruim de
adquirir B12 de maneira natural pois apenas 2 horas de confinamento são necessárias para produzir um quilo de leite.
Intervencionismo
Levado ao extremo esta
postura de evitar sofrimento acaba nos colocando diante da
possibilidade de intervir na natureza para reduzir o sofrimento dos
animais selvagens. De fato, parece que a maioria das vidas selvagens
tem mais sofrimento do que prazer. Os sinais de estresse, ferimento e
expectativa de vida de animais selvagens colocam em questão se este
tipo de vida vale a pena. Alguns defendem que a vida selvagem repleta
de sofrimento e desafios realiza os indivíduos que nela existem, mas
este tipo de defesa soa simplesmente retórica. O melhor argumento
contra intervir na natureza é conservador. Na verdade, como na
maioria dos casos as intervenções humanas na natureza com intuito
de melhorar acabam sendo desastrosas por não preverem muitas das consequências, parece ser melhor deixar a coisa funcionar como agora
e concentrar o esforço em não prejudicar (em vez de tentar
melhorar).
Em benefício próprio
A situação hipotética
de termos que escolher salvar vinte cachorros em vez de um humano
provavelmente não acontecerá com nenhum de nós. Porém, vários
casos similares acontecem no contexto em que existimos. Um caso é o
dos experimentos científicos. Por exemplo, para saber se um shampoo
fazia mal aos olhos humanos fazia-se, até bem há pouco tempo, testes em
coelhos. Ainda hoje, pesquisas com ratos são o primeiro passo para o
teste de várias vacinas. Mais uma vez, o primeiro caso não é mais
aceito, o segundo, sim. De novo, a explicação parece ser a
necessidade. O benefício de um produto de beleza é visto como fútil
e não justificaria o sofrimento dos animais. Por outro lado, a
criação de uma vacina traria um benefício imenso e necessário
para os seres humanos (e também para outras espécies, caso se adote
um programa de vacinação animal), o que parece justificar o
sofrimento de infligido aos animais não humanos.
Em benefício dos outros
O caso da alimentação
de humanos em extrema pobreza também se apresenta aqui. Muitas ONGs
sugerem que compremos vacas, porcos ou outros animais que servirão
de fonte de alimentação para pequenos fazendeiros cujas pequenas
terras e rebanhos tornaram-se improdutivos devido ao aquecimento
global. É uma escolha especista salvar uns, os humanos pobres, com a
vida dos outros, os animais de rebanho. Além disso há sempre a
escolha de doar nossos recursos que são escassos. Podemos aplicá-lo
em organizações que lutam pelo direito dos animais ou em
organizações que combatem a pobreza extrema (o conflito ainda
aumenta na medida em que o aumento de rendimento implica um aumento de
consumo de carne, como o caso da China, Índia e Brasil comprovam).
Quem ainda aceita a complexidade subjetiva como um critério, deve
optar por doar 100% do dinheiro dedicado ao altruísmo para salvar
vidas humanas. De qualquer maneira, nos casos que não envolvem
escolhas, não há dúvidas. A adoção de uma dieta vegana é um
exemplo disso. Outra possibilidade é doar tempo na promoção dos direitos dos
animais tentando convencer os outros a adotarem uma dieta sem carne.
Bichos de estimação
Outro problema que
aparece é o caso dos bichos de estimação. A escolha por ter
cachorros e gatos domésticos, por exemplo, parece ser especista, já
que estes animais são predadores urbanos que geram muitas mortes. Um
gato provoca uma morte a cada 17 horas fora de casa. Por outro lado,
não se deve ignorar o benefício gerado aos animais de estimação.
Com certeza eles são bem tratados como nunca e, nos casos em que não
são criados presos, levam vidas plenas. Isso justifica,
principalmente, o caso de se adotar um animal abandonado como bicho
de estimação. Ainda assim, existem efeitos colaterais. Ter um
cachorro parece gerar mais poluição que adquirir um carro grande
como um SUV. O ideal talvez seja evitar os dois. Este efeito de
poluição é ampliado no caso dos animais de rebanho, já que estes
mamíferos, através de seus gases, são grandes produtores de
metano.
Conclusão
As questões são
complexas, minha apresentação é introdutória, e pede
aprofundamento. De qualquer maneira, respostas fáceis não virão. O
mais importante, no entanto, é não usar esta dificuldade de
posicionamento como uma justificativa para a inação. Não é uma
questão de tudo ou nada. Só porque você não vai acabar com todo
sofrimento animal, não quer dizer que você não deve fazer nada
para melhorar a situação em que o mundo se encontra. Por isso para
de ir a touradas, procurar comprar carne de animais tratados com
alguma dignidade, virar vegetariano, vegano, resgatar um cachorro na
rua e, etc são todas atitudes válidas que devem ser feitas por quem
quiser e valorizadas mesmo por quem não as faz. Em termos práticos
um dia sem carne já reduz algum sofrimento e poluição. Estes casos
são exemplos de situações em que tentar já é conseguir.
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