O que não vou
discutir
Tudo aquilo
que todos discutem, mudando de opinião de acordo com o editorial que
seguem, mais à direita ou esquerda. Em miúdos, não vou tratar, a)
se a copa no Brasil é boa ou ruim, b) se há corrupção nas obras,
c) se os estádios vão servir após o término do evento, d) seu
impacto social, e) a isensão fiscal da Fifa e etc. Estas questões
são muito importantes, provavelmente as mais importantes, e por isso
são muito tratadas. Exemplos com bons argumentos a favor e contra
estão em vários endereços. O assunto aqui, por outro lado, é mais
rasteiro e menos polêmico. Quero apenas pegar a questão da copa
para analisar opiniões que já possuímos à luz da maneira em que
agimos. Se eu tiver sucesso espero mostrar que a gente tem que
adequar um pouquinho nosso comportamento para agirmos de maneira
coerente com o que acreditamos ser certo.
O que todo
mundo acha
É consenso
que a Copa, um evento esportivo, é menos importante que educação e
saúde. Com isso, tanto quem critica quanto quem a apoia, concorda.
Quem critica acha que é um absurdo o governo gastar 33 bilhões de
reais num evento esportivo enquanto este dinheiro poderia ser
aplicado em áreas que carecem de investimento como a educação e a
saúde. Quem apoia a copa defende que uma coisa não tem a ver com a
outra, já que o dinheiro gasto não será retirado dos fundos da
saúde e da educação. A postura do governo também está de acordo
com esta unanimidade já que ele investe 123,6 bilhões de reais por
ano em saúde (IBGE, 2009). Isso quer dizer que, para o governo, a
educação da população é quase quatro vezes mais importante que a
copa do mundo. Mas e pra gente?
A nossa
situação é ambígua. Pra gente a saúde parece ser um pouco mais
importante que a diversão. Isso porque cada brasileiro gasta, em
média, 1,5% da sua renda com recreação e 1,6% com saúde. Mais
interessante ainda são os pontos em que esta equiparação é
contraditória. Em 2007, por exemplo, o gasto médio do brasileiro
com cigarro foi de 15,81 reais por mês enquanto o gasto com plano de
saúde foi 15,35 reais por mês. Uma vez que 50% de quem fuma vai
morrer por causa do cigarro, as chances são grandes de que, se a
gente fosse o governo, a aplicação da verba pública estaria em uma
situação ainda pior.
Racionalizar
os gastos
O primeiro
ponto que este argumento traz para as finanças pessoais é um
convite a algum grau de racionalização. Talvez uma boa estratégia
de investimento seja: usar o nosso dinheiro um pouco como achamos que
o governo deveria aplicar as verbas públicas. Se você fosse o
governo o que faria com os 15 reais mensais que gasta em cigarros (ou
diversão)?
Alguns devem
estar pensando que não somos como máquinas e que, nem se
quiséssemos, conseguiríamos reduzir nossas despesas apenas ao que é
útil. Isto provavelmente está certo. E mais, é preciso reconhecer
que este ponto se aproxima bastante de quem defende a copa como um
evento benéfico para o país. De fato, a gente não precisa só de
educação e saúde, ainda que seja isso o que a gente precise com
mais urgência. Ademais, um evento de grande porte, ainda mais numa
economia global, pode sim desencadear algum retorno benéfico. É
difícil saber o que é útil uma vez que o que parece desperdício
tem chances de acabar se provando lucrativo no futuro. Diante disso o
comprometimento não precisa ser total. A gente pode sim equilibrar
as finanças a partir de um olhar mais atento ainda que deixe espaço
para deslizes necessários.
Mas eu não
sou o governo
A primeira
objeção que a gente faz diante da analogia apresentada é que o
indivíduo tem prioridades totalmente diferentes do governo. Mas se o
governo governa para população e a população é constituída de
indivíduos, em alguma medida, suas prioridades devem se entrelaçar.
Por exemplo, a saúde da população é a mesma coisa que a soma da
saúde dos indivíduos. Se o governo deve se ocupar desta saúde
porque o indivíduos não deveriam fazer o mesmo?
Os números
também comprovam isto. Apesar do Brasil possuir um sistema de saúde
pública, a população gasta mais com saúde do que o governo. Em
2009, por exemplo, gastamos 157 bilhões de reais em saúde (IBGE).
Isso quer dizer que, nós não só agimos como o governo, mas também
também agimos no lugar do governo quando reconhecemos que ele falha
em algum ponto. Em outros termos, os indivíduos tanto aceitam gastar
como o governo quanto se comprometem a substituí-lo caso ele não
funcione. A questão que resta, então, é se a nossa obrigação é
substituí-lo apenas quando ele falha com a gente, ou também quando
ele falha com os outros.
Moralizar os
gastos
Ao diferenciar
governo e indivíduo, a gente tende a ser liberal com o indivíduo e
conservador com o governo. A pessoa pode fazer o que quiser com o seu
dinheiro enquanto o governo tem que fazer o melhor para a população
com a verba pública. Deste ponto de vista, por exemplo, quem quiser
que gaste 500 reais para assistir um jogo da copa. No caso do
governo, por outro lado, este mesmo tipo de desperdício é visto
como imoral. Mas esta diferenciação faz mesmo mais sentido que a
analogia?
Imagine que
você sofre um acidente na ida para o jogo da copa. A ambulância
pública não chega. Você não tem condições para acionar o seu
plano de saúde privado. Um médico, então, que também está a
caminho do jogo, pode salvá-lo, desde que aceite perder o ingresso
comprado para o espetáculo. Existe uma outra ação correta para ele
fazer além de salvar o estranho, que neste caso acontece de ser
você?
Felizmente a
história não passa de uma hipótese que provavelmente não se
realizará. Pelo menos não com você. Devemos nos considerar
afortunados pois estamos mais próximos da posição do médico do
que do acidentado. Nós podemos salvar em vez de precisar sermos
salvos pois com uma pequena parte da nossa renda a gente pode sim
melhorar a vida de muita gente que, por uma questão acidental, não
compartilha dessa nossa posição confortável. Com 50 Reais a Fred
Hollows foundation realiza uma operação de catarata que recupera a
visão de uma pessoa. Será que um jogo da copa vale mais que a visão
de 10 pessoas?
Conclusão
Uma teoria
ética é como uma passarela, há um custo pelo benefício de passar
por ela. Se o custo for muito grande, a gente acaba preferindo o
risco de evitá-la. O pedido aqui, entretanto, é bem pequeno. A
gente cobra do governo o que achamos que é certo, mas, muitas vezes,
esquecemos de ver se a gente age como achamos que é certo. Então,
porque não canalizar um pouco da crítica a má gestão de recursos
por parte do governo para pensar como a gente distribui a nossa
renda. Assim não estaremos nos evadindo ao jogar a responsabilidade
para os outros nem nos comprometendo muito a ponto de tornar nossa
rotina insuportável. É nesse sentido que aplicar a crítica que
fazemos aos outros no nosso comportamento pode nos ajudar a viver uma
vida um pouco mais coerente com o que acreditamos. Talvez seja hora
de considerar investir um pouco do excesso da sua renda no bem-estar
social dos mais necessitados.
Quem ainda
acha que apenas as questões que não foram tratadas aqui são
importantes, que o problema é estrutural e exige mudanças políticas
radicais, convém fazer um exercício. Quantas mudanças políticas
estruturais você estima que vai provocar ao longo da sua vida? Em
termos práticos, alguém acredita que não vai ter copa? E se não
tiver, o dinheiro gasto será revertido para a saúde ou educação?
De modo que esse tipo de comportamento acaba sendo um escape para a
gente seguir a vida como está sem achar que estamos contribuindo
para o estado injusto das coisas. Mas, na verdade, a nossa
preocupação conceitual e indiferença prática contribui sim. Uma
maneira imediata de mudança, com resultados verificáveis, é o
investimento da sua renda pessoal em uma causa que ache justa. Agora
é só começar.
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