Introdução
A gente
responsabiliza as autoridades públicas pelas mortes causadas pelas
chuvas de verão no sudeste do Brasil porque elas poderiam ter
realizado medidas preventivas contra estas tragédias previsíveis.
Portanto, a gente reconhece que 1) que a prevenção é a medida
correta e 2) que o governo falha em realizá-la. Mas o que nos escapa
é que muitas vezes agimos como o governo. Quando vemos um pedinte
miserável sempre temos o impulso de oferecer alguma ajuda imediata,
porém também falhamos ao dar o passo para as medidas preventivas. A
solução seria simples. Basta fazer desse tipo de ajuda uma
contribuição constante para algum programa capaz de retirar
permanentemente as pessoas de uma condição miserável de vida.
A tragédia
Eu
escrevo esse ensaio algum tempo depois das enchentes causadas pelas
chuvas de verão no sudeste brasileiro. Agora, março de 2011,
a tragédia está virando estatística. A
cobertura da imprensa mudou da exposição dos dramas pessoais para a
apresentação de dados numéricos. Imagens de pais desesperados como
Wendel Cunha (33) à procura de seus filhos desaparecidos vão logo
se transformar em mais alguma unidade adicionada ao número de
vítimas da maior tragédia causada por chuvas na história do
Brasil. Até
agora são 905
mortes, 8.746 desabrigados e 20.790 desalojados. Como
nós não somos
tocados por números, em poucas semanas a
emoção causada pela tragédia deve se extinguir. Até
este momento as doações têm sido altas, mas
a tendência é que elas logo parem. De maneira análoga não deve
demorar muito até o governo se esquecer da necessidade de
medidas estruturais preventivas.
Bom, pelo
menos até o ano que vem, quando as chuvas sazonais vierem outra vez.
Então, novas versões dos mesmos dramas serão contadas e os
cidadãos que doaram no ano anterior vão se apressar em condenar com
veemência a negligência do poder público. Os mais exaltados vão
até mesmo chamar os políticos de assassinos. Eles não estão de
todo errados. Nós tendemos a concordar que quem pode prevenir uma
morte (sem pôr em risco a sua) e não o faz, deve ser julgado
responsável pela omissão. Para ver é isso é só pensar num drama
pessoal. O governo negligente é como um cidadão que vê uma criança
se afogando, sabe nadar, mas não faz nada para ajudar. A minha
intenção, no entanto, não é criticar o governo em defesa das
vítimas das tragédias. Estas críticas são tão recorrentes quanto
as chuvas de verão, mas, diferente das enchentes, elas não parecem
fazer muito efeito. Por isso vale tentar uma estratégia oposta. Que
tal questionar os doadores esporádicos à luz das estatísticas?
Os números
A crítica
não é a doação excepcional em si. Situações extremas pedem por
ações imediatas. Doar para remediar faz sentido. O exercício,
porém, será o de dar um passo a mais e tentar chamar a atenção do
doador esporádico para o que ele já sabe. Assumo que a maioria já
sabe em vista de três fatores. 1) A comoção pelas mortes, 2) a
prontidão em ajudar e 3) a crítica à negligência dos governos
frente a uma tragédia anunciada. O que parece mais difícil de ver é
como estes três pontos vistos em conjunto apontam para uma possível
incoerência na nossa atitude. Talvez seja válido usar as
estatísticas para fazer reconhecer esta negligência individual.
Se
nós tomamos a maior tragédia provocada
pelas chuvas no Brasil, para nivelarmos por cima, teríamos cerca de
1.000 mortes por ano. Sem dúvidas, um acontecimento que mata 1.000
pessoas e desabriga 30.000 por ano merece ser considerado com
seriedade. Mas diante destes números o que
dizermos dos 11.2 milhões de brasileiros que estão passando fome?
Se os brasileiros
famintos fossem uma nação eles ocupariam o septuagésimo
primeiro lugar na lista dos mais populosos,
à frente de Portugal, por exemplo. Apesar deste número
impressionante, pessoas famintas não são uma notícia constante nos
telejornais. A maioria deles não tem seu
drama pessoal contado pela imprensa, mas
este é outro problema.
O objetivo deste ensaio não é ser mais uma crítica a mídia de
massa, mas sim
persuadir
indivíduos que precisam apenas dobrar a esquina para trombar com
algum drama pessoal relacionado à fome.
O
quadro atual
Nós,
como todos os que se comovem pelos dramas e tragédias com os quais
temos contato direto ou por notícias, concordamos que é preciso
ajudar quem precisa. Além
disso, estamos dispostos a ajudar, como comprova o grande número de
doações em casos de tragédias ou de
pessoas que dão esmola nas ruas. Sabemos
ainda, já que criticamos o governo, que o
tipo mais importante de ajuda são as medidas preventivas. E,
por fim, reconhecemos também
que 12 milhões de vítimas da pobreza é
mais do que suficiente para caracterizar uma tragédia, mesmo
sendo uma estatística que não vira notícia.
Nesse quadro, então,
o que nos falta é
reconhecer que ao doarmos esporadicamente estamos agindo como o
governo que se esquece da prevenção e gasta o dinheiro de maneira
ineficiente em medidas de reparação posterior.
Conclusão
Como
a maioria eu era (e ainda sou) mais uma voz criticando o poder
público por falta de programas preventivos. Como quase todo ser
humano eu sou tocado pelas visões
de pessoas em condições miseráveis de sobrevivência. O que eu
levei tempo para perceber é que a minha atitude era como aquela que
eu criticava no governo. Eu ajudava quando a oportunidade se mostrava
na minha cara, mas negligenciava o caso mais numeroso que pede por
cuidado diário, planejamento e prevenção. Ajuda esporádica em
resposta a dramas pessoais não é suficiente se você assume uma
perspectiva global. Negar ajuda ainda é antiético mesmo se você só
conhece as vítimas por números. Uma vez que a gente reconhece isso
a doação mensal se mostra como um passo irrevogável. Sem dramas
particulares ou necessidade de comprometimento político, é só uma
questão de considerar a pertinência de
dedicar uma parcela da sua renda mensal pessoal para o
bem-estar coletivo.
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