Introdução
No que se segue pretendo
defender a importância da pequena mudança no hábito do indivíduo
como fator desencadeador de mudança social e política em uma
sociedade. Esta defesa é pertinente porque, assim como a história e
a mídia tradicional, também a juventude inquieta com a tradição
tende a dar muito mais importância aos grandes atos. Esta
importância é desmesurada em vista do fato de que o valor dos grandes
atos está justamente em desencadear pequenas mudanças.
Movimentos de mudança
social podem ser divididos em dois grandes momentos. Primeiro, é
preciso 1) ganhar vista para, então, 2) ser estabelecido. 1) depende
de grandes atos, mas, além da visibilidade, não traz grandes
benefícios. É como se fosse o sistema de partida elétrica de um
carro. Ele dá a ignição mas é insuficiente para colocar o carro
em movimento. 2) consiste em pequenos atos, é essencial para a
realização da mudança e, mais importante, pode inclusive
prescindir de 1). Em suma, 1) precisa de 2) mas a recíproca não é
necessária. Pode-se, por exemplo, fazer um carro dar a partida no
tranco para, então, colocá-lo em movimento propulsionado. Vamos a
um exemplo histórico dentro da área discutida.
Exemplos
O dia é primeiro de
dezembro de 1955. Rosa Parks, uma negra em seus 40 anos que voltava
do trabalho, se recusa a ceder seu assento no ônibus para uma pessoa
branca. Em cumprimento da lei o motorista chama a polícia e a
polícia prende a mulher. O caso leva Martin Luther King Jr. a fazer
um discurso exaltado. “Chega um tempo em que as pessoas se cansam
de ser esmagadas pelos pés de aço da opressão.” O discurso de
Luhter King foi um evento do tipo 1) enquanto a senhora Parks
realizou uma ação do tipo 2). O discurso é uma exortação ao
direito de realizar o ato realizado sem retaliação. Nesta relação
entre os dois se vê a vantagem das pequenas ações de
estabelecimento. Estas já são, em si mesmas, uma realização
daquilo pelo que lutam. É claro que não existe a necessidade de se
escolher um dos dois. A sequência do movimento apresentou vários
discursos e inúmeros pequenos atos. O ponto é que para se
estabelecer é preciso passar dos grandes atos às pequenas ações.
Após o sucesso do movimento os pequenos atos seguem sendo realizados
diariamente.
No caso do movimento
pelos direitos dos negros nos EUA é difícil mensurar os impactos
dos grandes atos e das pequenas ações. Para tanto, podemos recorrer
a um movimento atual, o vegetarianismo. Para não entrar na discussão
de que os animais merecem consideração moral, vou analisar o caso a
partir de um viés ecológico. Uma dieta vegetariana causa um impacto
ecológico bem menor que uma dieta carnívora. 25% dos gases danosos
emitidos na atmosfera vem da agricultura animal. Em tempos de mudança
climática uma maior adoção do vegetarianismo pode ser defendida
como uma parte da solução. Também neste movimentos temos espaço
para 1) grandes atos de visibilidade e 2) pequenas ações de
estabelecimento. Um exemplo de 1) é a chamada 'meatless monday'
(segunda sem carne). Paul McCartney é o garoto propaganda da ação
que pretende mostrar que é possível (e gostoso!) fazer refeições
sem carne. O exemplo de 2) é a pessoa que deixa de comer carne. O
exemplo é tão banal que parece inútil, isso até olharmos os números. Um vegetariano evita a emissão de 1,5 toneladas métricas
de CO2 por ano. Isso equivale a um carro que anda 3.571 milhas ou 169
galões de gasolina ou 1.611 pounds de carvão queimados ou ao CO2
absorvido por 1.2 acres de floresta. Neste caso, o grande argumento
em favor de ações de visibilidade como 1) é que elas levam a 2).
2) é importante porque já traz em si a realização da mudança.
Além disso, se uma pessoa muda seu hábito ela também pode levar
outras a mudarem de modo que 2), assim como 1), também leva a
ampliação de 2).
Acredito que a mesma
postura tem que ser tomada em relação à desigualdade. Muito se faz
para que esta mudança ganhe visibilidade. A Oxfam mostrou que as 85
pessoas mais ricas do mundo tem a mesma riqueza que a metade mais
pobre da população mundial. A notícia ganhou as manchetes dos jornais, mas quais foram suas consequências? Isso pode ter o problema
de polarizar a questão colocando a responsabilidade de tudo nessa
pequena parcela da população. Basta ir aos comentários deste tipo
de matéria para ver coisas do tipo: “reis e camponeses, foi bom
ter saído deste sistema, certo? Não, espera, ainda é a mesma
coisa.” ou “Eles reuniram armas e exércitos para garantir que
isso não mude” ou “se nós redistribuíssemos a riqueza deles,
eles logo a tomariam de volta.” Mas, em vista dos extremamente
pobres, faz sentido mesmo esta divisão entre nós (os meio ricos) e
eles (os muito ricos)?
Dan Ariely tem um
experimento muito interessante sobre a corrupção. Ele deu um teste
aos participantes que, eles mesmos, após responderem, deveriam
corrigir e passar os resultados ao examinador. Assim era fácil
roubar, além disso, quanto mais alguém acertava, mais ganhava. O
resultado foi que uns poucos roubaram muito, outros poucos não
roubaram nada e a maioria roubou uma quantidade mediana. No entanto,
no final, a soma do roubo dos medianos gerava um rombo maior que a
dos poucos que roubaram muito. É claro que há diferenças entre os
dois casos, mas uma coisa não pode ser questionada. Pequenas ajudas
mensais feitas regularmente pela parte da população que ganha uma
renda mediana também são suficientes para acabar com a pobreza
mundial. Neste quadro, se o problema é de distribuição de renda,
nós também temos responsabilidade. Peter Singer tem um artigo interessante que explora quanto cada um deve doar.
Aplicação
Após este elogio às
pequenas mudanças individuais diárias quero aplicá-las a casos
práticos de movimentos que emergem atualmente no Brasil.
1) O exemplo mais geral é
a chamada ocupação do espaço público. Por todas as cidades do
país acontecem eventos artísticos nas ruas reclamando o uso do
espaço público pela população. Estes eventos são ótimos mas
continuam sendo um estado de exceção. Para o movimento deixar ser
um movimento e virar rotina é necessário que quem gosta da proposta
de tais eventos comece a usar o espaço público quando não há
eventos. É preciso começar a ir tomar o café da manhã de um
domingo qualquer no parque com a família, por exemplo. Em vez de
pensar em ocupar a cidade, visto que ocupação tem um tom
temporário, seria preciso pensar em usar a cidade.
2) O outro exemplo é a
melhora do trânsito. Ir uma vez por mês passear com os amigos de
bicicleta em um grande evento ajuda a trazer visibilidade, mas para
estabelecer a mudança é necessário que a bicicleta passe a ser
usada na rotina, para ir ao trabalho ou à universidade, por exemplo.
3) Relacionado ao
trânsito está o movimento pelo transporte público gratuito. Nesse
caso o ato de pular a catraca em uma manifestação traz
visibilidade, porém pular a catraca diariamente parece difícil de
ser realizado sem que cause um grande custo para quem o fizer. Neste
caso a mudança tem que ser mais política mesmo. A necessidade de
estabelecimento, porém, se aplica à mudança política. Além de
ocupar a câmara dos deputados em uma ocasião especial, parece
necessário fazer da frequência às reuniões abertas ao público
uma rotina.
4) O caso das ocupações
de terrenos e prédios abandonados por famílias sem casa consiste em
uma ação de estabelecimento, já que pede por comprometimento
diário. Seria como pular a catraca todos os dias. Da mesma maneira,
a posição é arriscada para quem a realiza (por isso, quem realiza
é quem não tem outras opções mais viáveis). Nesse caso, quem não
está na situação mas reconhece seu mérito deve apoiar e suportar
diariamente a causa.
5) Movimentos de direitos
civis contrários ao machismo, racismo e homofobia também precisam
ser realizados em ações de estabelecimento. Principalmente nestes
casos que já têm muita visibilidade é que se faz necessário
certificar para que seus princípios guiem todo tipo de pequenas
ações que incorremos diariamente. Sair de topless na ocasião
especial da marcha das vadias não traz uma contribuição direta
para a mudança do hábito. Da mesma maneira, sair na marcha LGBT ou
admirar uma celebridade negra sem ter amigos gays ou negros não vai
mudar muita coisa.