O dia em que eu (não) deixei de ser humano para ser um altruísta eficaz









Introdução:
O altruísmo eficaz, num certo sentido, tem uma pretensão de ser sobre-humano. Isto porque advoga a necessidade de superação dos chamados 'vieses cognitivos', que são maneiras pelas quais nós, humanos, erramos sistematicamente. O exemplo mais direto é o da distância psicológica que mostra como a gente tende a sentir mais compaixão pelo que está mais perto, mesmo sem ter razão para isso. Desse modo, normalmente, preferimos ajudar uma pessoa que está em perigo ao nosso lado em vez de ajudar uma dezena de pessoas longe de nós. Segundo o AE este é um viés a ser superado já que é preferível salvar dez pessoas no lugar de uma. Por esse tipo de princípio tal posição pode ser acusada de 'calculista' já que ignora o sentimento causado pela proximidade em vista do número de vítimas a ser salvo.

A teoria colocada em prática:
Por ser calculista, o AE sugere que doemos a parte de nossa renda para onde nosso dinheiro escasso causará o maior impacto positivo no maior número de pessoas possível. Numa aplicação prática isso requer que eu não dê 2 reais para um pedinte na rua se posso dá-los ao programa de controle da esquistossomose que precisa dessa quantia para facilitar entrega de tratamento na África. Apesar do pedinte na esquina me comover mais, em geral, o que eu faço é reservar uma quantia do meu ordenado para doar para causas eficazes.

Negligenciar o sofrimento que se apresenta diante de nós é uma tarefa árdua. Mas é importante notar que, no fim das contas, a preferência por gerar o máximo de bem com o mesmo recurso é que é mais humanista. Apesar disso, não é preciso desconsiderar a crítica por completo. Mesmo diante da superação de um viés cognitivo é sempre bom observar também sua função operante no dia a dia. Se não construíssemos alguma distância psicológica em relação ao 1.2 bilhão de pessoas que vive atualmente em extrema pobreza (com menos de 1.25 dólar por dia) atualmente, seria muito provável que a angustia causada por tamanho sofrimento nos impedisse de viver. Neste sentido, seguir com a vida mas doar uma parte da nossa renda para combater a pobreza é uma forma de superar a distância psicológica sem deixar que essa superação se transforme num impedimento. Por outro lado, convém tomar cuidado para que a superação da distância psicológica não leve a uma posição na qual deixemos de sentir comoção diante do sofrimento alheio.

A prática interferindo na teoria:
Por exemplo, quarta passada (14/04/2014), uma figura esquálida subiu no ônibus em que eu ia para a universidade. Ele fez um discurso emocionado. Contou que tinha AIDS, adquirida da mulher, e que eles tinham um filho com uma doença rara (esqueci o nome). O homem disse ainda que precisava conseguir 200 reais para comprar o remédio que salvaria a vida da criança (por uns dias). Enquanto ele falava eu pensava. Não faz sentido nenhum dar dinheiro pra ele. Mesmo se a história for verdadeira, o remédio caro vai apenas retardar o desfecho trágico inevitável. É muito melhor usar este dinheiro com uma causa mais eficaz. Só que, vivendo a situação, eu não gostei de pensar assim. E mais, foi só porque eu pensei assim e não gostei de fazê-lo que acabei dando algum dinheiro para o pedinte.

É claro que não abandonei meus princípios. Antes de dar o dinheiro eu me comprometi a não deduzir a quantia da minha doação mensal. Assim, eu pensei, não retiraria dinheiro de uma causa eficaz para contribuir com uma ineficaz. É claro que não foi preciso pensar muito mais pra concluir que, na verdade, eu deveria era ter aumentado a quantia que doo por mês com o que dei para o pedinte. Para solucionar o dilema, resolvi acrescentar a mesma quantia que doei a ele à minha doação desse mês. É claro que nesse ponto a tendência é cair numa repetição ao infinito de sempre aumentar a quantia a ser doada. Porém, recorri a distância psicológica e freei o impulso (correto mas ainda sobre-humano demais para mim) de aumento indefinido.

Reavaliação:
O homem desceu do ônibus, mas eu segui pensando na situação. Pensei que talvez pudesse ser mentira a história dele, apenas uma ficção criada para tirar dinheiro das pessoas. Diante disso, o primeiro impulso é se indignar. Mas, depois de considerar a questão mais um pouco, acabei defendendo o contrário. É, às vezes é melhor terminar em reavaliação do que em conclusão.

Eu espero mesmo que seja mentira e que ele tenha nos enganado. Isto porque dar dinheiro pra alguém saudável que vai usar o recurso pra melhorar sua vida é melhor do que suportar uma causa perdida apenas por piedade. E mais, a mentira dele (se for mentira, é claro) conta muito sobre a nossa postura diante da necessidade dos outros. Se ele subisse no ônibus e dissesse que o seu filho tinha esquistossomose e precisava de dinheiro pra tratá-lo pouca gente ia se comover. Isso porque essa doença tropical negligenciada não é vista por nós como uma ameaça real já que vivemos uma realidade tão diferente da maioria da população mundial em extrema pobreza. É preciso, portanto, romper a distância psicológica para saber que as doenças tropicais negligenciadas causam mais dano que a Aids. Então, ciente de que do nosso ponto de vista comovente é a Aids (doença ainda sem cura!), o que o homem fez ao inventar aquela história foi adequar o seu drama real a um vocabulário que nós entendemos. Desse modo ele realizou, apelando para os sentimentos, o que o AE quer fazer através da razão: quebrar a distância psicológica para levar a ação. Parabéns a ele, um altruísta eficaz inato.

Quem não teve a sorte de encontrar com um pedinte hoje pode ir ao site do SCI e fazer uma doação.

Cansados demais para fazer a coisa certa:








Introdução
A divisão do dia em três intervalos de 8 horas é arbitrária. Sua motivação é apenas a de dividir 24 horas em três partes iguais. Desta divisão, mais do que de qualquer evidência, surgem padrões comportamentais como a jornada de 8 horas de trabalho e a necessidade de dormir 8 horas por dia. No ideal original as outras 8 horas seriam dedicadas ao lazer. Em vista das jornadas absurdas de trabalho de 16 horas diárias em 1817 as motivações dessa proposta de divisão feita por Robert Owen são justificadas. Mas só porque ela é responsável por um importante ganho no direito dos trabalhadores não quer dizer que está correta.

Em tempos pré-revolução industrial sociedades de catadores-coletores tinham jornadas de 3 a 4 horas diárias de trabalho esparsados ao longo do dia. Também sua postura em relação ao sono era diferente. Mais comum era dormir durante a noite em dois ou três períodos divididos por intervalos de semi-vigília. Apesar disso, não só porque um comportamento foi o mais comum durante a maior parte da história da humanidade é necessário que seja o melhor para nós. Atualmente pesquisas confirmam que nossa capacidade de atenção dura períodos curtos de tempo (90 mins) e que pequenos intervalos de descanso (20 mins) aumentam a capacidade de foco e produtividades. Assim, além da quantidade, também a divisão em três blocos imensos e contínuos de trabalho, descanso e lazer não parecem ser o ideal para se aproveitar nossa natureza humana.

Estado da questão

Hoje em dia cresce o debate acerca da redução da jornada de trabalho. Na maior parte as justificativas por essa redução respondem a crítica de Marx. Segundo ele exigir muito da força de trabalho acaba matando essa força. Neste espírito, buscam-se experiências que mostrem como uma jornada mais condensada é melhor para trabalhadores e empresas pois aumentam a produtividade. O exemplo clássico é o da Ford, pioneira na redução da jornada de trabalho para 8 horas que, aliado ao aumento de 100% nos salários dos trabalhadores, dobrou seus lucros. Hoje em dia, as famosas jornadas flexíveis da Google tentam repetir este pioneirismo atacando não só a quantidade mas a distribuição do período de trabalho.

Além disso, outra motivação comum para redução da carga horária é política. Seus defensores argumentam que uma dupla jornada mais curta aparece como candidata a amenizar a crise de emprego no mundo desenvolvido. Mas talvez haja ainda outro motivo para a redução da jornada de trabalho, o comportamento moral.

Uma nova hipótese

Pesquisas comportamentais revelam que o cérebro age como um músculo. A analogia quer dizer que ele precisa ser exercitado para atuar, mas que, cansado após muito exercício, fica mais propenso a falhar. O autocontrole segue o estado do cérebro. Após um dia extenuante de trabalho é muito mais difícil resistir a uma sobremesa do que logo pela manhã. É neste ponto que a moral entra na história. Fazer uma escolha moral muitas vezes implica em autocontrole já que é preciso deixar de buscar um prazer próprio e imediato para se alcançar o bem-estar comunitário no futuro. Uma hipótese seria que pessoas mais descansadas estariam mais aptas a agirem moralmente.

Adotar esta hipótese como motivo para a redução da jornada de trabalho não é tão absurdo quanto parece. Assim como um motorista extenuado é um perigo para o trânsito, um trabalhador extenuado pode ser visto como um perigo para a comunidade. As chances de uma reação violenta, por exemplo, aumentam quando o autocontrole diminui. Tem que ser verificado, mas parece plausível supor que jornadas estafantes tenham algum efeito, por exemplo, a casos de violência doméstica. Neste quadro, um trabalhador que trabalha menos e em períodos esparsos alternados com descanso e lazer encontraria mais energia, não só para produzir, mas para gerir melhor sua vida social.

No altruísmo eficaz

Resta agora pensar a questão em relação ao altruísmo. Quem parar para analisar vai ver que a maioria dos nossos gastos é supérfluo. Portanto, é uma questão de autocontrole que vai determinar o quanto e o que gastamos a maioria do nosso ordenado. O movimento do Altruísmo eficaz defende que é moralmente correto abrir mão (pelo menos) dos gastos muito supérfluos, para ajudar quem vive abaixo da linha de pobreza. Um mosquiteiro anti-malária, por exemplo, custa 6 reais. 207 milhões de pessoas que não têm como pagar pela proteção contraem a doença por ano. Nesse quadro, resistir a uma sobremesa pode salvar uma vida. A defesa do autocontrole pode, inclusive, ir além, uma vez que na maioria dos casos o nosso consumo supérfluo tem resultados negativos a longo prazo. A gente sabe, por exemplo, que o excesso de açúcar na sobremesa fará mal para nossa saúde no futuro. Ou seja, apesar de termos motivos egoístas e altruístas para nos abstermos deste tipo de consumo, ainda assim não o fazemos. A solução não é simples e nunca será total. De qualquer maneira, se um dos motivos deste comportamento disparatado é o cansaço, a mudança da quantidade e distribuição da jornada de trabalho geraria alguma melhora. Uma sociedade menos cansada pode ser mais um pequeno passo para uma sociedade mais justa.

Quem ainda tiver energias pode ir ao site da Against Malaria Foundation e comprar alguns mosquiteiros.

Exemplo pessoal
Este artigo foi motivado por um caso particular. Eu estava andando de skate em uma pista perto da praia de Cabo Frio. Tinha andado toda a manhã, estava cansado, quando um grupo de três pessoas à caminho da praia resolve cortar caminho pelo meio da pista de skate. Eu resolvi não esperá-los pra fazer minha manobra. Caí e meu skate foi na direção deles, atrapalhando seu atalho. No primeiro momento fiquei feliz de ter 'mostrado' que eles deveriam dar a volta e passar no caminho por fora da pista. Depois, no entanto, refleti e me arrependi. O resultado deste exame de consciência foi esta postagem.