A questão
O boicote aos
sweatshops faz mais mal aos seus trabalhadores do que consumir seus
produtos?
Definir o escopo
Para que o argumento se
desenvolva de maneira mais bem estabelecida convém definir melhor o
que se entenderá por sweatshop. Para ser considerado trabalho em
sweatshop será necessário haver exploração desumana dos
trabalhadores. Como numa relação de bonecas russas, agora é
preciso definir exploração e desumana. É mais rápido tentar
entender o que os dois juntos querem dizer. Casos menos consensuais
considerados exploração por uns, mas não por outros, não se
aplicam. Por exemplo, serviços árduos, menos remunerados do que se
esperava, mas ainda sim regidos por direitos trabalhistas básicos
não serão considerados. De modo que lixeiros, empregados
domésticos, operários de mineração regularizados estão fora do
escopo.
A exploração desumana
nos sweatshops será definida como aquela que oferece remuneração
muito baixa, cerceia a liberdade de ir e vir do trabalhador, o coloca
em condições extremas que ameaçam sua saúde, não lhes garante
direitos básicos como licenças médicas, intervalos para lanche ou
usar o banheiro e impinge uma carga horária extenuante diária e de
6 a 7 dias por semana. Não se pretende uma definição definitiva. A
perspectiva adotada será de que um certo número desses traços
baste para caracterizar uma exploração desumana.
A comparação entre
casos limítrofes entre exploração e exploração desumana talvez
ilustrem a diferença. Compare as condições dos trabalhadores do
almoxarifado da Amazon em países desenvolvidos (ou seja, com leis
trabalhistas mais estabelecidas) e a produção de roupas em
economias subdesenvolvidas como ficou exposta no caso do prédio
desabado em Bangladesh. Ainda que os primeiros mereçam melhores
condições de trabalho e reclamem do modo como são tratados,
pintá-los como se estivessem na mesma situação dos últimos seria
muito ruim para esses. Isso porque no segundo caso há violação
clara de direitos humanos enquanto no primeiro não. Por outro lado,
deve se deixar claro que esse exemplo não tem intuito de estabelecer
uma separação simples segundo a qual todo trabalho em fábrica em
economias subdesenvolvidas caracteriza exploração desumana.
O argumento do menos
pior
Definido o escopo, é
hora de apresentar o argumento de maneira caridosa. Entender um
argumento com caridade, no jargão filosófico, equivale a
interpretá-lo da melhor maneira possível antes de ver se ele
procede. Em vista da exploração desumana que ocorre, é claro que
ninguém, ou, pelo menos, ninguém que está pensando teoricamente no
assunto, é a favor desse tipo de trabalho. O que se diz, é que
acabar com sweatshops faria mais mal do que bem aos empregados.
Portanto, o erro de quem boicota consiste na falha de não pensar
como as coisas seriam se aquilo contra o que protestam acabasse. Por
uma questão de facilidade, vamos chamar de argumento do 'menos pior'
essa linha de defesa dos sweatshops.
Para o argumento do
menos pior funcionar a narrativa do que aconteceria com o boicote aos
sweatshops deve ser mais ou menos da seguinte maneira. As pessoas
boicotam a marca X que, em algum momento da sua cadeia de produção,
utiliza produtos produzidos por trabalhadores em condições
desumanas. A empresa vai à falência. Seus empregados se transformam
em desempregados e, ser desempregado, é pior do que trabalhar 16
horas por dia, 6-7 dias por semana, sem pausa, em um ambiente
infernal, sem segurança, com chefes abusivos, em troca de um salário
miserável.
Escolhas?
A opção pela
descrição um tanto chocante foi proposital. O objetivo seria gerar
uma primeira pergunta antes de entrar no argumento. Seria realmente
preferível o sweatshop ao desemprego? Para os defensores do
argumento do menos pior o comportamento dos trabalhadores que
procuram esses empregos é tomado como um indicativo de que sim, é
preferível. Pessoas chegam a emigrar de maneira ilegal em busca de
empregos desse tipo. Aceito isso, a questão que se apresenta é se
podemos aceitar a falta de opção como indicativo de preferência.
Se eu vou a uma pizzaria que só serve um sabor de pizza por dia não
pode se dizer que eu escolhi meu sabor preferido. Porém, tampouco
pode se dizer que não houve escolha. Eu escolho se quero comer ou
não. Mas podemos dizer que essa escolha atesta um nível mínimo de
qualidade mínima da pizza? Para dizer que não é preciso uma
evidência comportamental similar à oferecida acima. Nesse caso, é
preciso que apareça uma opção um pouco menos ruim e que os
clientes da pizzaria a preferissem.
Um caso prático que
ilustra esse tipo de comportamento seria o das domésticas no Brasil
(ainda que o serviço doméstico, como foi dito, não é um serviço
com as condições tão ruins como as dos sweatshops). Com aumento da
oportunidade no mercado de trabalho a porcentagem de mulheres que
desempenham essa atividade historicamente mal remunerada vem caindo
ano após ano. Diante desse tipo de exemplo parece seguro concluir
que as pessoas preferem sweatshops a nada, mas que também
prefeririam qualquer condição um pouco melhor em vez da que são
coagidos a aceitarem. A situação então é que sweatshops são
melhores que nada, mas qualquer outra opção um pouquinho melhor é
preferível.
Se voltarmos ao
argumento veremos que essa preferência não o desvalida. Isso porque
segundo a sua narrativa estaríamos em um dilema binário para
escolher entre sweatshops ou desemprego (ou, no máximo, entre
sweatshop ou empregos ainda piores). Também existem exemplos para
ilustrar essa situação. Um caso citado é o de um senador do estado americano de Iowa que tentou passar uma lei para impedir a importação de produtos vindo de
fábricas que utilizavam mão de obra infantil. Em vista disso as
empresas teriam demitido as crianças que, segundo um relatório das
nações unidas, parecem ('are thought to') ter migrado para empregos
ainda piores. A linguagem do relatório é muito pouco objetiva para
que o caso seja tomado como evidência, mas pode ser um indicativo.
Talvez seja sim o caso de que um emprego no sweatshop seja uma
maneira de ajudar quem não tem outra opção.
A maré
Seguindo essa linha do
argumento do menos pior alguns economistas conservadores e outros
mais à esquerda defendem a necessidade dos sweatshops. O argumento
deles vai além do nível individual e apresenta uma regurgitação
do notório argumento da maré. Segundo o argumento da maré o
desenvolvimento econômico provocado pelos trabalhos criados pelos
sweatshops vai incrementar a economia da região e dar empregos aos
desempregados. Além disso, eventualmente, a maré vai levantar
também a qualidade de vida desses que compõem o estrato mais baixo
dentre os que participam dessa economia.
O exemplo aqui seria o
dos tigres asiáticos cuja economia desenvolvida de agora tem origem
em um impulsionamento da economia proporcionado por produção de
bens baratos em sweatshops. A partir da renda advinda desse mercado,
seus governos investiram com sagacidade em infraestrutura e educação.
Assim eles passaram de uma região produtora de bens baratos para
produtores de tecnologia de ponta. Agora, em vez de produzirem bens
baratos eles compram esses produtos de sweatshops em outros países.
Esses países, com o tempo e os investimentos necessários, seguirão
o mesmo caminho.
Porém, há um problema
nesse modelo. Basta adotar uma perspectiva global para notar que
houve apenas um deslocamento da violação aos direitos humanos dos
sweatshops que passou de dentro das fronteiras de uns países para
regiões estrangeiras. Portanto, não faz sentido dizer que eles
ultrapassaram a fase de sweatshops. Não, eles apenas os
externalizaram. Os que sofriam em seu país foram substituídos por
outros que agora sofrem em outro lugar, e, se esses se desenvolverem,
farão o mesmo. Nessa dinâmica, se a prática dos sweatshops
continuar sendo aceita, haverá sempre apenas uma transferência do
sofrimento. O que torna esse um argumento ético (e provavelmente
econômico do ponto de vista global) muito ruim.
Uma analogia histórica
pode ajudar a colocar em perspectiva. Era justo para EUA, Europa,
Brasil e etc usarem escravos vindos de outros continentes? E, depois
da proibição na Europa ou no norte dos EUA, era justo, consumir
bens produzidos por escravos em outras regiões? Por um tempo foi,
mas não queremos repetir esse erro. Talvez seja utópico demais
pedir que todos trabalhadores tenham condições de trabalho
equiparáveis. Na verdade, em vista do mercado globalizado atual,
esse tipo de igualdade, ainda que desejável, retiraria o incentivo
das empresas usarem mão de obra de regiões menos desenvolvidas e,
como vimos, o nada parece ser pior do que os sweatshops. Porém, o
que se pede são apenas condições mais humanas e salários mais
condizentes. Em vista dos preços dos produtos quando chegam nas mãos
do consumidor isso parece bem factível sem nenhuma grande alteração
em como o mercado funciona (ainda que uma alteração seja desejável,
mas como é muito mais difícil e incerta de se conseguir ficará
para outra discussão).
Múltiplos outros
jeitos possíveis
Argumentos do tipo do
menos pior também podem ser criticados dentro da falha que eles
viram no boicote aos sweatshops. Assim como é uma falha deixar de
pensar o que aconteceria se as coisas fossem de 'outro jeito', também
seria uma falha pensar que há apenas um 'outro jeito' possível. Não
é assim, em sistemas complexos como as sociedades humanas existe uma
pluralidade de possibilidades. Para manter o diálogo com o argumento
do menos pior convém se ater a situações que já aconteceram para
vislumbras essas possibilidades.
Um exemplo fatual de
outras consequências possíveis acontece na pressão pública feita
às grandes marcas para que mudem seu comportamento. Um desses casos
envolveu a uma campanha pública (incluindo boicote) contra a Apple
porque seus aparelhos, muito caros, eram montados em sweatshops da
Foxconn. Como consequência, é claro que a empresa mais valiosa do
mundo não faliu, sequer a terceirizada mais criticada, a Foxconn,
fechou. O que se seguiu foi um comprometimento da Apple de vigiar
mais de perto as condições de trabalho em seus fornecedores.
Empresas de chocolate, seguindo pressão da Oxfam, fizeram algo
parecido e até o comprometimento do McDonalds de não usar ovos de
galinhas criadas em gaiolas se encaixa, de maneira ampla, nessa
discussão. Em suma, não é preciso querer fechar as empresas, o que
é necessário é apenas reforçar a opinião comum de intolerância
a este conceito de sweatshops.
E, como quem argumenta
a favor dos sweatshops em vez de nada, concorda que as condições
desses trabalhadores são horríveis, é de se esperar que eles
concordem com um melhoramento dessas condições. Além disso, acho
que é saudável manter um certo nível de ingenuidade que permita
pensar em 'mundos possíveis' melhores além de intervenções cujas
consequências podem ser mensuradas. Afinal de contas, as melhores
possibilidades provavelmente vão aparecer no meio de muitas
tentativas de outros jeitos que fracassam. Em casos complexos como
esse seria preciso uma grande quantidade de tentativas para se
selecionar com qualidade.
Consumo ético
O segundo alvo da
crítica aos que defendem o boicote aos sweatshops é uma das
soluções que vem abocanhando uma parte cada vez maior do mercado.
Chama-se consumo ético a busca por parte do consumidor de ter uma
garantia de que a produção dos bens adquiridos respeite os direitos
humanos dos trabalhadores e o meio ambiente. O termo é geral e
abarca as mais variadas ações, nem todas com o mesmo nível de
coerência e eficácia. Pode ser um selo de garantia de produção
orgânica ou um selo de fair trade que garante bom tratamento
dos empregados.
Os críticos apontam
que existem vários problemas com a maioria dessas iniciativas. O
mais evidente é que, como é caro obter esses selos, eles acabam
privilegiando negócios de médio e grande porte. Isso deixa os
pequenos produtores, os mais necessitados, fora do jogo. Outro efeito
colateral é que, devido a esse diferencial, a tendência é que
esses produtos do consumo ético chegam ao consumidor por um preço
mais alto. O problema disso é que uma renda que poderia ser gasta
ajudando soluções eficazes para melhorar as condições de vida de
quem precisa acaba indo para esses bens.
O primeiro ponto aqui é
reconhecer o que há de positivo nesse movimento de consumo. Fica
claro uma vontade dos consumidores de bens dos países desenvolvidos
de assegurar uma cadeia de produção justa por trás dos bens que
eles compram. As pessoas estão dispostas a pagar mais para
participar de um mercado mais bem distribuído. Isso deve ser
elogiado e aproveitado. Por outro lado, se a crítica mostra que essa
vontade não tem gerado os melhores resultados, é preciso reavaliar
a solução. Digo reavaliar, e não abandonar porque o fato de que o
modelo atual não funciona, não implica que é melhor deixar como
está. Se o estado atual é ruim e a solução não funcionou é hora
de procurar outra solução (ou outra maneira de aplicar a solução
proposta). A questão, mais uma vez, é não assumir que o que
acontece agora em um caso particular obriga que sempre acontecerá
assim. Existem várias outras possibilidades possíveis.
Uma possibilidade no
caso dos orgânicos adotada pelo governo do Brasil pode apontar uma
solução. Aqui, produtores da agricultura familiar, principalmente
os assentados em terras de reforma agrária, podem vender seus
produtos como orgânicos sem custo adicional de requirir um selo.
Basta se declararem produtores orgânicos. O governo ainda se dispõe
a comprar sua produção se eles se unirem em um grupo e fornecerem
quantia suficiente para a alimentação oferecida em escolas públicas
e outros projetos.
Uma analogia
Agora vou dar
meta-passo e tentar identificar o que haveria por trás dessas
posturas no campo da meta-ética. Eu suponho que a universalidade
opere na diferença de perspectiva vista acima. Quem não aceita o
'menos ruim' universaliza. Para esses comprar de um sweatshop não é
apenas incentivar essa empresa particular que vai ajudar esse
trabalhador que precisa, mas é também legitimar esse modelo de
mercado que se embasa na exploração desumana de trabalhadores. Já
quem defende o 'menos ruim' enfatiza que a consequência de comprar
em sweatshop para os trabalhadores da empresa é melhor do que o
boicote.
É hora de outra
analogia para pensar o dilema. Suponha que você veja um animal
silvestre sendo vendido em um mercado sem as menores condições
higiênicas e de conforto. Pode se ter vontade de comprar o animal
para salvar esse indivíduo em particular. Por outro lado, pode se
pensar que ao comprá-lo, se incentivará o mercador a capturar um
outro animal, e até outras pessoas a se tornarem mercadoras de
animais silvestres. Desse ponto de vista, o ato feito para ajudar um
indivíduo acaba condenando vários outros.
Primeiro, há de se
responder o cético a mudanças comportamentais por atitudes
isoladas. Ele dirá que, se você não comprar, outro comprará e
tudo vai ficar na mesma. Esse, no entanto, não parece ser um bom
contra-argumento para o boicote por alguns motivos. Primeiro, não
comprar teria sido ruim na medida que você não ajudou o animal
particular em questão. Ora, se outro o comprar, o indivíduo será
ajudado de qualquer maneira, de modo que o bem será o mesmo. O caso
dos sweatshops ainda tem o agravante de que o benefício não vai
assim direto a quem você quer ajudar, mas a maior parte fica com o
dono das empresas em que eles trabalham.
Segundo, é claro que
ninguém é tão ingênuo a ponto de pensar que a sua abstinência
solitária da compra vai acabar com o comércio. Mas, por outro lado,
há de se concordar que é a soma de abstinências de compra que vai
enfraquecer o comércio, e, quem sabe, acabar com ele. Portanto, cada
um tem sua pequena parte insuficiente mas necessária para mudar as
coisas. Além disso, se o argumento do um só não faz diferença
funciona para criticar quem quer boicotar, ele deveria funcionar
também contra quem acha que boicotar gera é mais mal do que bem.
Isso porque se o boicote do indivíduo não faz diferença positiva,
também não fará negativa. De qualquer forma fica claro que aceita
a universalização, não se trata de lutar para que hajam
alternativas éticas para que os consumidores possam escolher, mas
antes que seja obrigação de todo e qualquer negócio oferecer
condições humanas de trabalho aos seus empregados.
Confronto
Até aqui, temos que
os defensores do argumento do menos pior acham que a alternativa ao
sweatshop é a sua ausência e que isso gera mais mal do que bem. Já
os defensores do argumento do boicote e do consumo ético, acham que
parar de comprar produtos de sweatshops e comprar produtos com selos
de comércio justo é a melhor saída. Seus opositores, no entanto,
apontam que o comércio ético corrobora seu ponto de que a
alternativa aos sweatshops é pior que sua permanência, pois
privilegia quem não está no fundo da cadeia de produção.
Se confrontarmos essas
posições aceitando o que há de plausível e o que não funciona em
cada uma teríamos que não é aceitável que hoje em dia se coloque
trabalhadores nas condições impostas pelos sweatshops. Isso deve
acabar e é perfeitamente factível que aconteça. O boicote pode ser
um passo para se pedir o fim dos sweatshops, no entanto, ele não
pode ser pelo fim da fábrica nos países em desenvolvimento, mas
antes pela regulamentação de condições necessárias para a sua
permanência. Além disso, a alternativa aos produtos boicotados não
pode ser a dos selos de consumo ético. Esses fazem mais mal aos
produtores em pior situação no mercado global. Se for assim, se
segue que é preciso também boicotar os produtos sobre taxados do
consumo ético.
Colocar em prática
Desse caminho eu
moldei qual será minha atitude diante da questão da seguinte
maneira. A solução, de fato, não é conclusiva, mas me parece
suficiente para evitar, primeiro, produtos de selos de consumo ético
e, segundo, produtos de sweatshops. No fim das contas, o que se deve
procurar são produtos não sobretaxados com a desculpa de
assegurarem bom tratamento aos trabalhadores e também que não
venham de sweatshops. Porém, se tiver que escolher entre um ou
outro, é melhor escolher aquele procedente de um sweatshop e gastar
o dinheiro que você economizou para algum tipo de ajuda humanitária
que lhe apeteça. Porém, não é o caso que sempre você tem apenas
essas duas opções. Pensando em leguminosas, por exemplo, você não
precisa comprar ou de um produzido com trabalho escravo ou a loja de
orgânicos em que os preços são absurdos. Existem várias opções
entre esses extremos. O mesmo acontece com roupas, que não variam
apenas entre produzidas em sweatshops ou atestadas com selo de
qualidade.